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Por Alexandre Carauta, jornalista e professor da PUC-Rio
Pelos caminhos entre esporte, bem-estar e cidadania
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Atividades esportivas ampliam combate às violências contra mulheres

Criadora do Empoderadas, Erica Paes estende a crianças aulas de prevenção a agressões e idealiza área exclusiva a torcedoras no estádio do Engenhão

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Atualizado em 30 ago 2021, 13h41 - Publicado em 30 ago 2021, 13h11

Erica Paes é desses dínamos que (re)acendem a fé na vida. Poderia contentar-se com os louros do título mundial de jiu-jitsu e das vitórias sobre Cris Cyborg, maior lutadora de MMA de todos os tempos. Prêmios às incontáveis horas sobre o tatame iniciadas na infância em Belém. Erica poderia surfar a espuma da participação na novela “A força do querer”, na qual também inspirou a personagem de Paola Oliveira. Mas decidiu comprar uma briga bem mais difícil.

A metade dos seus 41 anos tem sido dedicada a fortalecer mulheres contra covardias que violam o corpo, a dignidade, o direito de ir e vir. Erica coordena o Empoderadas, um programa gratuito de enfrentamento a abusos físicos e psicológicos. Busca, acima de tudo, precavê-los. “É uma tecnologia social, não um curso de defesa pessoal”, distingue a paraense radicada no Rio desde 2001.

Vinculado à Secretaria de Direitos Humanos, o Empoderadas atende 25 mil mulheres em 20 polos estaduais, como os da Rocinha, na capital; de Angra, na Costa Verde; e de São João de Meriti, na Baixada Fluminense. A iniciativa ramifica-se em Santa Catarina e no Pará. São Paulo, Espírito Santo e Salvador se juntarão ao time até o fim do mês.

“A Erica nos inspira a levantar a bandeira do empoderamento feminino. Com o apoio dela, da Patrulha Maria da Penha e do Centro Especializado de Atendimento à Mulher (CEAM), estamos mudando um pouco a realidade de São João de Meriti”, anima-se o secretário de Esporte e Lazer, Dinho Meriti. Entusiasta das atividades esportivas como inclusão social e redução da violência, Dinho incorporou um núcleo do Empoderadas ao Projeto #Vemcer,  aulas gratuitas de defesa pessoal e orientações jurídicas a mulheres.

Participantes do Emporadas em São João de Meriti
Participantes do núcleo do Empoderadas em São João de Meiti (Divulgação/Reprodução)

As técnicas e recomendações ensinadas convergem para o desafio de reduzir a quantidade de vítimas da violência num país em dívida com a liberdade feminina. O machismo estrutural perpetua absurdos como a incidência de um estupro a cada oito minutos. Por duas vezes Erica escapou desse crime historicamente concentrado nas populações mais pobres e vulneráveis.

“O Afeganistão é aqui. Há mais de 66 mil estupros por ano no Brasil. Sem contar outras tantas espécies de violência, inclusive a psicológica”, aponta a ex-atleta. “Empoderamos as mulheres com ferramentas para que não sejam importunadas, agredidas, mortas. Para que exerçam o direito de ir e vir, e mantenham o brilho nos olhos”, completa.

O caminhar feminino confronta-se diariamente com diversas formas de agressão, desde o prosaico assédio na condução ou no escritório até o homicídio outrora camuflado de crime passional. O feminicídio abateu 1.326 mulheres em 2019. Um crescimento de 7,1% na comparação com o ano anterior, assinala o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Quase 90% das vítimas foram mortas por companheiros ou ex-companheiros.

Essas agressões escancaram nossa desigualdade, nosso atraso. Já deveriam pertencer ao inaceitável. Suas raízes alimentam-se da reciclagem de gêneses socioculturais retratadas, por exemplo, em “Casa Grande e Senzala”, de Gilberto Freyre. Erica tenta erradicá-las nas aulas e demais derivações do Instituto Eu Sei Me Defender.

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“Ensinamos as mulheres a reconhecer um agressor. Um criminoso doméstico em potencial pode ser reconhecido por comportamentos como possessividade, ameaças, proibições. Elas aprendem a enfrentar tecnicamente violências como a importunação sexual, evitando que progridam para um estupro ou feminicídio. Não é um trabalho de vitimização. Não é contra o homem. É contra a violência”, esclarece.

A cruzada ganha duas novas frentes: a adaptação das aulas a crianças de 4 a 12 anos, no recém-criado Empoderadinhas; e a Arquibancada Lilás, área do Nilton Santos que será reservada às torcedoras. Erica idealiza o novo espaço do estádio olímpico administrado pelo Botafogo:

“Fui convidada pelo presidente do Botafogo, Durcesio Melo, para criar uma área dedicada ao público feminino, que muitas vezes é discriminado e nem consegue torcer”, conta a pentacampeã brasileira de jiu-jitsu. Ela acredita que o modelo seja replicado Brasil afora, embora reconheça um certo verniz paliativo:

“Infelizmente essa solução ainda é necessária diante da realidade, para que as mulheres possam curtir plenamente o jogo, o time, a experiência no estádio”, justifica. “Trabalho muito para que isso não seja mais preciso, e a mulher possa frequentar a padaria, a praia, o bar, o estádio, a rua sem ser importunada, ofendida, agredida”.

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O Empoderadinhas também movimenta a rotina e a esperança da empreendedora. Erica ressalta a importância de ensinar às crianças técnicas de enfrentamento à violência de gênero:

“Das milhões de crianças abusadas a cada dia, 75% são meninas. Precisamos fortalecê-las desde cedo. Muitas vezes a própria mãe desqualifica o pedido de socorro da filha”, alerta.

A pioneira de MMA doura o sonho de agregar ações assim numa política pública acima de tinturas político-partidários. Aproximou-se desta perspectiva em 2018, quando ajudou a desenvolver o Delas, programa federal que escala as artes marciais para prevenir violações dos direitos femininos. Com sorte, talvez saia da hibernação num futuro próximo.

Enquanto isso, Erica Paes adiciona sucessivos participantes ao seu tatame social:  prefeitos, defensoras públicas, empresários, dirigentes esportivos. Um tatame de todos nós. Por milagre, ela garimpou na agenda intensa um tempinho aos Jogos Olímpicos:

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“Não perdia nada: tênis de mesa, natação, ginástica, atletismo, skate. Até porque o esporte é uma fonte de empoderamento, respeito, integração. Uma inspiração para unir homens e mulheres contra qualquer forma de violência”.

O filho Renzo, radicado nos Estados Unidos, cresceu sob essa inspiração. Virou faixa-preta de muay-thai. “Eu até tentei levá-lo para o jiu-jitsu. Mas, sabe como é, ele preferiu outra luta”, recorda Erica.

Talvez o neto Damian, de 6 meses, faça um dia a vontade da avó. Lutador ele já é:

“Nasceu prematuro, aos cinco meses. Passou quatro meses e 17 dias lutando pela vida. Foi a sua primeira grande vitória. Rezei muito. Sou devota de Nossa Senhora de Nazaré, como boa paraense. Estou louca para visitá-lo lá em Boston”.

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Erica Paes é desses dínamos que acendem a fé na vida. Uma primavera de perseveranças nas quais florescem empatia, responsabilidade democrática e social, igualdade. Sem tais valores, a chegada ao século 21 seguirá distante. Não são negociáveis. Nem por bilhões de bitcoins.

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Alexandre Carauta é doutor em Comunicação, mestre em Gestão Empresarial, pós-graduado em Administração Esportiva, formado também em Educação Física.

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