A máfia das apostas esportivas e as raízes socioculturais do Brasil
Sob a mira da Polícia Federal, quadrilha que manipula jogos de futebol escora-se na genética patrimonialista e escravocrata de um país poroso ao conchavo
O Brasil das chuteiras torna a encontrar o Brasil das mutretas, das carteiradas, das caligrafias patrimonialista e escravocrata. Manifestam-se nas violências concentradas sobre pretos, pobres, mulheres, indígenas, homossexuais, no ódio à diferença destilado pelas redes, nas realidades paralelas forjadas em nome de conveniências econômicas ou políticas, nas seitas supremacistas. Manifestam-se também na indústria do futebol
As manipulações esportivas mapeadas desde fevereiro pelo Ministério Público de Goiás, na operação Penalidade Máxima, sinalizam uma máfia condizente aos bilhões que lubrificam a jogatina digital. Beneficiada com a falta de regulamentação da atividade – embora esteja autorizada desde 2018 –, a quadrilha prosperou a partir da triangulação entre atletas, aliciadores e apostadores golpistas.
“Ao corroerem a credibilidade do mérito esportivo, os crimes ameaçam não só o mercado. Ameaçam o próprio futebol”, alerta o coordenador da pós em Direito Desportivo da PUC-Rio, Job Gomes. Em entrevista à coluna, ele ressalva: “Regulamentar é vital à segurança jurídica. Mas não basta. É necessário um pacto por transparência e fiscalização, com avanços políticos, gerenciais e tecnológicos”.
O poço fundo sinalizado nas investigações preliminares as desdobra para a Polícia Federal e para CPI endossadas pelo ministro da Justiça, Flávio Dino. “Além das questões econômicas, trata-se de um patrimônio cultural do Brasil”, lembrou.
Sem desmerecer o peso social do futebol, a força-tarefa se justifica frente à densidade econômica do novelo que começa a se desfiar com os 16 indiciados (sete jogadores, nove apostadores) por manipularem 13 partidas (oito da Série A e uma da Série B de 2022, quatro em Estaduais de 2023). As averiguações indicam mais jogos e fraudadores.
Caso o golpe se confirme sistêmico, com alcance até internacional, a transparência e a confiança primordiais a qualquer negócio ficariam nocauteadas. Preservá-las configura-se especialmente desafiador num universo que simboliza nossa identidade cultural, nossas dores, delícias, pulsões, retrato das nossas ambiguidades. José Miguel Wisnik as destrincha em “Veneno remédio” (2008, Companhia das Letras).
O futebol promove, em parte, a democratização racial preconizada por Gilberto Freyre e seus herdeiros ideológicos. Mas não deixa de incorporar nossa genética escravocrata, patrimonialista, personalista.
Dissecados pelo historiador Sérgio Buarque de Holanda no ensaio “Raízes do Brasil”, de 1936, esses traços estruturam um país permeável à desigualdade, à corrupção, a mordomias, discriminações e opressões endêmicas, ao cumprimento seletivo das leis. Território fértil a patifarias como adulterações esportivas.
O combate à máfia das apostas impõe, no varejo, apurações coordenadas da cadeia criminosa e punições exemplares aos integrantes: atletas, aliciadores, apostadores, financiadores, chefões. Envolve também a iminente regulamentação do setor.
No atacado, a batalha é mais dura. Enfrenta nossa visceral e secular porosidade ao conchavo.
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Alexandre Carauta é professor da PUC-Rio, doutor em Comunicação, mestre em Gestão Empresarial, pós-graduado em Administração Esportiva, formado também em Educação Física. Organizador do livro “Comunicação estratégica no esporte”.