O menino afogado
No meio do artigo, eu parei. Estava tudo bem, apenas revisava mais um texto sobre ópera — mas parei e mesmo as lágrimas secaram, mudas perante a imagem do menino. Parei o que sentia. Justifiquei que talvez as imagens dos corpos igualmente mortos de Auschwitz, por serem sem cor pareciam menos impactantes. Rosto gritando para […]
No meio do artigo, eu parei. Estava tudo bem, apenas revisava mais um texto sobre ópera — mas parei e mesmo as lágrimas secaram, mudas perante a imagem do menino.
Parei o que sentia. Justifiquei que talvez as imagens dos corpos igualmente mortos de Auschwitz, por serem sem cor pareciam menos impactantes. Rosto gritando para o centro da terra, esse pequeno pedaço de horror falava com uma horrível doçura de uma existência curta é tão inutilmente desperdiçada.
Senti que aí estava o centro nervoso do meu choque: de repente minha mente ligava essa pequena morte, esse desespero a um horror que ainda há pouco completava 70 anos. São sempre refugiados da mesma forma que somos todos emigrantes. E aquela guerra, como a de 1914, havia começado quase com nada. Era uma discreta epidemia de morte que de repente invadiu todo o mundo.
Aí estava, sim, todo o problema dessas guerras surdas em que homens parecem brincar como meninos; só que meninos com armas mortais. E no meio do caminho ficam as mulheres, mães e crianças: muitos e muitos meninos afogados invisíveis. E pensei também em quantas crianças, e mães, e toda sorte de parentes delas morrem em solo seco, nas favelas do Rio ou no sertão do Nordeste, por exemplo.
O problema para escrever um blog de ópera no Rio nesse momento não era falta de mortes trágicas na ópera, mesmo de crianças. Há também artistas “morrendo” sem chances, há excluídos e boicotados no sistema auto destrutivo da ópera no Brasil. Mas tudo isso, todas as brigas por poder em arte ficam sem sentido. Em algumas situações nem mesmo a arte consegue parecer uma forma de escapar à brutalidade: é tão estranho pensar que há momentos em que a ausência de humanidade é tanta que a arte não subsiste. No Rio, ainda tenho esperança de que possamos mudar algo através da arte. Fica essa única esperança de que, uma vez cicatrizada essa ferida nova no mundo, a arte sirva para amenizar um pouco tudo isso para que não nos afoguemos nós mesmo.
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