Efrain Almeida e a vitória da vida
Morto no dia 23, artista foi homenageado na ArtRio como expoente de sua geração e formador de talentos
Nada foi mais relevante, no início da ArtRio, do que a homenagem que a classe das artes visuais prestou a Efrain Almeida (1964-2024), morto na última segunda-feira (23), vítima de uma parada cardiorrespiratória. Em sua 14a edição, a feira franqueou sua arena de debates na quarta-feira (25), dia da abertura para convidados, e artistas, curadores e gestores de museus e galerias celebraram a trajetória e a obra do escultor, um dos mais importantes nomes dos anos 1990 no Brasil.
No texto a seguir, também reverencio a singularidade, a profundidade e a capacidade mobilizadora da obra de Efrain, retomando esta coluna de crítica e opinião na Veja Rio, que nós, cariocas, chamamos afetuosamente de Vejinha. Ela será publicada no ritmo do tipo de escrita que propõe. E ganha, nesta reencarnação, pílulas de texto que sucedem o artigo ou ensaio principal e versam sobre outros assuntos.
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Olhos nos olhos. Na primeira vez que escrevi sobre Efrain Almeida, no início ainda imaturo do meu percurso como crítica e curadora, parti da premissa de que a obra do artista nos intima a encará-la. A partir disso, vemos não apenas cada escultura, instalação ou aquarela, e sim as inúmeras bifurcações e desdobramentos que elas nos apresentam. Sigo afinada com aquele texto de meus começos, e com o desejo de estar inteira e em primeira pessoa para encontrar outras palavras. Busco sentenças que possam ser suficientes para condensar a importância deste artista imenso do qual tivemos que nos despedir. Mas vai o corpo, fica seu lastro; ficam as imagens que, quando ainda era animado por sensibilidade vertiginosa e inteligência cortante, este corpo produziu para nossa memória.
Ex-votos são provas de vida. São a representação popular de um corpo transformado (…) que venceu a morte. Na partida de Efrain, festejo essa vitória.
Também não é sobre isso a obra de Efrain? Seus carneiros crísticos, mariposas que buscam a luz e beija-flores em voo de suspensão não nos contam sobre redenções e recomeços? Ao fazer da ressignificação dos ex-votos uma espécie de força motriz de sua produção, o artista não nos contou e segue contando sobre as dores que podem ser curadas? Ex-votos são provas de vida. São a representação popular de parte de um corpo transformado, que enfrentou a travessia da doença rumo à cura. Um corpo que venceu a morte, enfim. Na partida de Efrain, festejo essa vitória.
Na história do artista, o triunfo da vida não foi apenas metafórico. Cearense de Boa Viagem, no Sertão do Canindé, Efrain conviveu com a morte desde menino. Em uma instalação para parede do início de sua carreira, Marcas (1997), 21 vestidos sustentados por mãos de madeira são dirigidos ao público como uma oferenda. À primeira vista, os vestidos são iguais. De perto, percebe-se as diferenças entre um e outro. A obra faz menção aos muitos amigos, tão crianças quanto ele, que Efrain perdeu quando garoto. Vieram desses primeiros velórios e enterros uma consciência da morte e uma atmosfera melancólica que percorre toda a sua produção.
“A ideia de tristeza e de melancolia está muito presente em meu trabalho. Tem uma relação muito estreita com minhas origens. Porque francamente as coisas foram difíceis, duras. As condições de vida não vieram de graça para mim. Às vezes, (a melancolia) ocorre de maneira muito consciente, muito medida, mas em outras ocasiões tenho que reconhecer que não tenho controle sobre ela”, disse ele em entrevista de 2001 a Cecília Pereira, publicada em um catálogo do Centro Galego de Arte Contemporânea.
Da infância trouxe ainda a intimidade com a carpintaria e as máquinas de costura, que tomavam o ambiente doméstico; e as lembranças de um imaginário popular cearense e de toda a região Nordeste. Mesmo sem ser um homem religioso, Efrain lançou mão de uma simbologia cristã sertaneja nacional, que interpreta a seu modo a tradição judaica e suas ramificações europeias. Ao fazer isso, leva essa iconografia para outros circuitos e encruzilhadas. Não se trata de uma mera apropriação, como talvez pudesse pensar um observador ou crítico de arte do Hemisfério Norte. Efrain fabulou, imaginou. Vestiu os corpos imagéticos que habitam sua memória com outras roupas — chagas, tatuagens, cicatrizes e curas.
Ao fazer isso, ampliou a voltagem de seu repertório. E pôs esses Brasis diante de nossos olhos, nos convidando (ciente de sua personalidade, diria que “nos intimando”) a encarar circunstâncias e seres invisibilizados por nossa história colonial, patriarcal, misógina, homofóbica. Em sua obra, ganharam protagonismo os lugares do fazer e da perícia manuais, habitados pela classe trabalhadora e pelos sem trabalho; e o avesso do litoral, carente de chuva, mas inundado por um imaginário que os brasileiros próximos da faixa subtropical nem sempre conseguem alcançar. A economia visual que Efrain estabeleceu, tanto em cada obra quanto no crucial diálogo das peças com o espaço expositivo, é, para mim, muito nordestina. Uma espécie de ascese que se faz presente na obra de artistas de outras gerações, como Mestre Vitalino (1909-1963), Gilvan Samico (1928-2013), Antonio Dias (1944-2018) e Leonilson (1957-1993).
Dias e Leonilson são importantes para que entendamos outras genealogias às quais Efrain se filiou. Ex-aluno da Escola de Artes Visuais do Parque Lage, onde teve aula com Beatriz Milhazes, ele foi assistente do escultor Hilton Berredo (1954-2024) que, assim como Beatriz, é um expoente da chamada “Geração 80”. Equivocadamente circunscrita a um momento de euforia e de “volta da pintura”, a arte brasileira dos anos 1980 foi importante para que, em um momento muito específico da história social e política do país (o pós-Anistia e a redemocratização), os criadores visuais afirmarem seu interesse conceitual e afetivo na imagem, na figura, posta em xeque em mais de duas décadas de desmaterialização e de hegemonia abstrata e conceitual. Com muitos diálogos possíveis com Antonio Dias e os artistas da Nova Figuração, os jovens criadores do período tiram partido de uma escala monumental e afirmam a imagem como um corpo ora ausente (Daniel Senise), ora exposto em suas peles, estufamentos e vísceras (Leonilson, Leda Catunda), ora calcinado, em despojos ou rejuntados aos pedaços (Angelo Venosa, Barrão, Nuno Ramos, Carlito Carvalhosa). É um período em que os artistas também se debruçam despudoradamente sobre um repertório histórico, artístico e popular, afirmando-os como coleções de imagens que os afetam, um grupo não hierárquico de afinidades eletivas, como mostram as obras de Beatriz, Luiz Zerbini, Delson Uchoa e Adriana Varejão.
Efrain começou um pouco depois e fez parte de uma grupo de criadores que desdobrou e buscou outras abordagens para essa relação com uma imagem-corpo. Analisada de forma panorâmica a partir de sua partida, sua obra nos auxilia de forma admirável a entender os anos 1990, em que o corpo abordado como imagem passa a aparecer de forma mais direta e vivencial, como experiência (Brígida Baltar, Ana Miguel, Laura Lima, Ernesto Neto, Márcia X), e a escala pode se tornar ínfima para que possa ser íntima (Anna Linnemann, Regina de Paula, Gê Orthof). O diálogo com a história, que outrora foi grafada em letra maiúscula e afirmada como um saber mais monolítico e unidirecional, agora se dá na importância plural e mínima das histórias de cada pessoa, com todos os seus rastros. Os trabalhos de Rosângela Rennó e Rivane Neuenschwander nos ajudam a entender isso.
Tudo é retrato de si mesmo, indício de uma investigação pessoal e identitária, permeada por sua memória, sua sexualidade e suas origens.
A importância do artista ultrapassa sua obra. Como professor do Parque Lage e da Escola Sem Sítio, Efrain foi um articulador do meio de arte carioca e o responsável por muitos artistas e curadores jovens terem conseguido perseverar suas jornadas. Um país como o Brasil, exige muita dedicação e perseverança daqueles que não nasceram herdeiros ou privilegiados.
No conjunto do trabalhos, ele nos deixa majoritariamente autorretratos, tanto aqueles em que é o seu corpo e o seu rosto que aparecem claramente representados quanto nas alegorias criadas pelos conjunto de imagens afetivas que maneja. Tudo é retrato de si mesmo, indício de uma investigação pessoal e identitária, permeada por sua memória, sua sexualidade e suas origens. O que vemos é o seu dentro atravessando para fora. Olhos nos olhos, o corpo todo enxerga e lembra: diante de Efrain, podemos perceber, aqui fora, aquilo que dói, lateja, aquece e mobiliza por dentro.
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RAPIDINHAS
Ainda ArtRio – Dividida em dois pavilhões, a Marina da Glória recebeu o circuito das grandes galerias no Pavilhão Terra e os estandes institucionais e das galerias do setor Brasil Contemporâneo, sob a curadoria de Paula Borghi, no Pavilhão Mar. “Quem vem pra beira do mar, nunca mais quer voltar”, eu poderia cantar, certa de que a melhor coisa que a ArtRio pode fazer pelo público (o das artes e o interessado em artes) é seguir dando espaço para as galerias pequenas de outros estados, como Boi e do Cerrado, e para que conheçamos melhor acervos como o do MAR (que homenageou Cosme e Damião) e projetos como o Solar dos Abacaxis. Não só bem-vinda, mas obrigatória contrapartida do mecenato.
Xowrumi – A intervenção mais interessante e cheia de desdobramentos do período pré-ArtRio ficou por conta do coletivo XOWRUMI, que realizou exposição relâmpago no fim de semana anterior à feira, dias 21 e 22 de setembro. O projeto Ação entre amigos evidenciou o mercado de arte como uma engrenagem que por vezes se transforma em teia de favorecimentos e perpetuação de privilégios históricos da sociedade brasileira. Nos personagens abraçados com camisetas com as letras que formam a palavra AMIGOS, retratos de galeristas e curadores.
Brígida Baltar – A exposição Pontuações, no MAR, é uma das alegrias do circuito de arte carioca no momento. Os curadores Jocelino Pessoa, Amanda Bonan e Marcelo Campos mostram uma quantidade panorâmica nunca antes reunida da obra de Brígida Baltar (1959-2022). Chama a atenção a maneira como a artista parece estar fabulando o fluxo da própria vida, ao tirar partido ora de elementos construtivos e estruturantes (tijolos, mel e cera das colmeias de abelhas), ora de elementos dissipadores (neblina, maresia, orvalho). O projeto expográfico de Tania Sarquis/Estúdio Sauá e a identidade visual de Lucas Bevilacqua colaboram muito para a criação da atmofera silenciosa e contemplativa que a obra de Brigida necessita.
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REPOST
Fluxos de Van Gogh – A CNN publicou, em seu portal, um artigo que cria novas camadas de compreensão sobre a obra de Van Gogh a partir da ciência. Sempre se perpetuou a crença, jamais comprovada, de que as espirais e movimentos circulares presentes em obras como Noite estrelada (1889, acervo do MoMA, Nova York) seriam indícios da perturbação mental por que passava o pintor, que chegou a cortar uma de suas orelhas antes de cometer suicídio. Uma pesquisa realizada pela Universidade de Xiamen, no sudeste da China, sugere que Van Gogh possuía uma compreensão intuitiva e profunda da matemática do fluxo turbulento. Trata-se de um fenômeno natural frequentemente encontrado em fluidos, como água corrente, correntes oceânicas, fluxo sanguíneo, tempestades e nuvens de fumaça. Sua característica principal é o caos aparente, onde redemoinhos maiores se formam e se fragmentam em redemoinhos menores. Embora esse movimento possa parecer aleatório a um observador casual, ele segue um padrão em cascata que pode ser analisado e, em certa medida, descrito por equações matemáticas. “Imagine que você está em uma ponte observando um rio. Você notará redemoinhos na superfície da água, e esses redemoinhos não surgem de forma aleatória. Eles seguem padrões específicos, que podem ser previstos por leis da física”, explicou Yongxiang Huang, principal autor do estudo e autor do gráfico que publico abaixo, reproduzido do site da CNN.