Daniel Sampaio Por Daniel Sampaio: advogado, ativista do patrimônio, embaixador do turismo carioca e fundador do Instagram @RioAntigo
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Memória de família: a menina Maria, a “hespanhola” e uma galinha

A curiosa história de uma carioca de 8 anos que cuidou sozinha da casa e dos doentes em plena pandemia de gripe espanhola

Por Daniel Sampaio Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 9 Maio 2020, 17h52 - Publicado em 9 Maio 2020, 01h05
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  • O cenário era desolador. Maria, com apenas 8 anos de idade, não compreendia bem o que estava ocorrendo. Há poucos dias, tudo estava normal na casa de esquina onde morava com seus padrinhos no bairro da Piedade.

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    Até então, a madrinha, sempre saudável e animada, e o padrinho, o forte e gentil mantenedor da família, eram os mesmos de sempre, suas referências familiares de segurança, carinho e sorrisos diários. De um dia para o outro, contudo, a realidade de Maria mudou: todos doentes, de cama, menos ela. A menina subia num banquinho que havia na sala de estar e observava, pela janela, corpos estirados nas ruas serem carregados em carroças que passavam de casa em casa.

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    Eram seus vizinhos! Os mesmos simpáticos senhores e senhoras que, carinhosamente, a chamavam de “menina-moça”, por parecer tão arrumada e comportada. Eles e seus filhos, empilhados e sem vida, eram jogados nas caçambas, como carcaças de animais. Em sua casa, nada além do ruído das tosses incessantes e dos gemidos de dor. E uma enorme tristeza que havia tomado conta das pessoas mais importantes de sua vida.

    Como cuidar deles, pensava a mocinha, se não havia mais ninguém? Os empregados da casa haviam ido embora para cuidar dos seus entes queridos e, obviamente, de seus próprios preocupantes sintomas. Maria encontrava-se só com seus padrinhos — e com uma responsabilidade de adulto que nunca tivera.

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    Menina americana ao lado de sua irmã, acamada em virtude da influenza, em novembro de 1918. Com o cunhado lutando nas trincheiras da França, essa menina, de tão preocupada, telefonou à Cruz Vermelha, que veio ao seu socorro. Assim como Maria e muitas crianças, ela teve que lidar, sozinha, com os horrores da gripe espanhola – (Biblioteca do Congresso dos EUA - American National Red Cross photograph collection/Reprodução)

    A madrinha, fraca, comunicava-lhe por detrás da porta:

    — Maria, precisamos tomar uma canja de galinha, que é comida para quem está “dodói” ficar melhor.

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    Numa época em que galinhas eram criadas e abatidas em casa, a garota apavorou-se; mas, com o coração batendo forte, e em pânico, ouviu as instruções da madrinha:

    — Só temos a ti para alimentar-nos. Pega uma faca bem afiada na cozinha, uma bacia e vai catar uma galinha no fundo do quintal. Com a faca, retira algumas penas do pescoço da coitada e corta-o fora, de uma só vez!

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    — Segura a bichinha bem firme, continuou a madrinha, até o sangue escorrer totalmente, depena a pobre na água quente, corta depois bem direitinho, faz um tempero, junta os pedaços e cozinha tudo. Está entendido?

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    — Eu tenho que fazer o quê? — pensou Maria, apavorada e consternada, pois gostava muito dos bichos de seu quintal, seus amiguinhos de brincadeiras.

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    Trêmula, pegou a faca, a bacia e apanhou a galinha que lhe foi mais fácil alcançar. Retirou, com relutância, algumas penas do pescoço do animal e deu-lhe um pequeno talho. Um fiapo de sangue então florou da pele do pescoço da galinha, que — rapidamente solta por Maria — saiu, amedrontada, batendo as asas, voando baixo pela casa.

    A menina encaminhou-se, aflita e desolada, até a porta do quarto dos doentes, a fim de enfrentar a dura realidade daquela derrota. Antes de chegar ao cômodo de seus padrinhos, eis que Maria parece enxergar um tênue fio de sangue pelo chão e, ao segui-lo, encontra, sob um dos móveis da sala de estar, a pobre galinácea, morta por hemorragia.

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    Quartel Central do Corpo de Bombeiros, no Campo de Santana. População perigosamente aglomerada, aguardando a venda de galinhas – (Revista Careta, ano 1918 edição 541, Rio de Janeiro/Reprodução)

    A canja foi, enfim, feita. A primeira de muitas ao longo de um mês durante o qual os padrinhos de Maria ficariam acamados, recuperando-se da tal “hespanhola”, uma gripe que mal parecia, de fato, uma gripe — de tão violentos e perversos os sintomas.

    No decurso daqueles longos dias e noites, Maria nada teve; nenhum sintoma lhe acometeu. E os padrinhos, felizmente, sobreviveram. 

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    Ao longo do início do mês seguinte, os corpos dos vizinhos foram desaparecendo das ruas. As janelas e portas da vizinhança foram, lentamente, sendo abertas pelos moradores assustados e traumatizados do pacato bairro da Piedade.

    Maria cresceu, casou-se e teve filhos e filhas — entre eles, minha mãe. Depois da gripe espanhola, a vida da minha avozinha, que, infelizmente, não cheguei a conhecer, nunca mais foi a mesma. Sua infância havia sido — para sempre e antes da hora — marcada pela face sombria da morte.

    *Texto elaborado a partir das lembranças de histórias que a minha avó, Maria América do Nascimento Lima, contava à minha mãe e aos meus tios e tias.

    **Daniel Sampaio é carioca do Grajaú. Advogado e memorialista. Apaixonado pela história do Rio de Janeiro e pelo resgate das memórias afetivas do nosso povo. Criador do perfil @rioantigo no Instagram, lidera o projeto RioAntigo.org, iniciativa de valorização do patrimônio cultural carioca nas redes.

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