Daniel Sampaio Por Daniel Sampaio: advogado, ativista do patrimônio, embaixador do turismo carioca e fundador do Instagram @RioAntigo
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Malhação do Judas, uma tradição quase extinta

O costume de destruir um boneco que representa o traidor de Jesus Cristo, no Sábado de Aleluia, ainda resiste em poucos bairros do subúrbio do Rio

Por Daniel Sampaio Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 6 abr 2023, 17h01 - Publicado em 6 abr 2023, 16h59
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  • Você se lembra da malhação do Judas no seu bairro antigamente? E no seu bairro atualmente, ainda existe essa tradição?

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    A malhação do Judas é uma tradição herdada da Península Ibérica e disseminada em boa parte dos países da América do Sul desde a época colonial. Esquecida, porém, em boa parte do Rio de hoje, ela ainda sobrevive em diversos bairros suburbanos.

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    Realizada sempre nas manhãs do Sábado de Aleluia, a prática consiste, basicamente, no linchamento coletivo e simbólico de um boneco representando Judas Iscariotes, o apóstolo de Cristo que o traiu e o entregou aos romanos.

    Segundo a tradição o boneco é pendurado em um poste, passando a ser atacado violentamente, sobretudo por crianças e adolescentes. Em muitos casos, o boneco é arrancado do poste e a malhação chega a níveis extremos. O boneco, que, em geral, é do tamanho de uma pessoa real, costuma ser incendiado ao meio-dia, o que muitos pais passaram a considerar inadequado para crianças.

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    Malhação da efígie de Judas no Sábado de Aleluia - Rio de Janeiro, década de 1830 -
    Malhação da efígie de Judas no Sábado de Aleluia – Rio de Janeiro, década de 1830 – (Jean-Baptiste Debret, 1835 - Coleção Brasiliana Itaú/Reprodução)

    É interessantíssimo o relato do artista francês Jean-Baptiste Debret sobre a Malhação do Judas, em seu livro “Viagem Pitoresca ao Brasil”. Nele, Debret conta detalhes sobre o ritual, que havia ganhado proporções de festa popular e continha bastante teatralidade e engenhosidade, conferida por costureiros e fogueteiros:

    “Compassiva justiça que serve de pretexto a um fogo de artifício queimado às dez horas da manhã, no momento da Aleluia, e que põe em polvorosa toda a população do Rio de Janeiro entusiasmada por ver os pedaços inflamados desse apóstolo perverso espalhados pelo ar com a explosão das bombas e logo consumidos entre os vivas da multidão! Cena que se repete no mesmo instante em quase todas as casas da cidade.”

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    Debret explica com cuidado como era montado esse espetáculo cenográfico e teatral:

    “Nos bairros comerciais a ilusão é mais completa mas também mais dispendiosa. Os empregados se cotizam para mandar executar, pelo costureiro e fogueteiro reunidos, uma cena composta de várias peças grotescas, aumentando consideravelmente o divertimento sempre terminado com o enforcamento do Judas pelo Diabo que serve de carrasco; (…) A figura indispensável, capital, é a do Judas, de blusa branca (pequeno dominó branco de capuz, usado pelos condenados); suspenso pelo pescoço a uma árvore e segurando uma bolsa suposta cheia de dinheiro, tem no peito um cartaz quase sempre concebido nestes termos: eis o retraio de um miserável, supliciado por ter abandonado seu país e traído seu senhor. Um Diabo com formas e face tenebrosa, a cavalo sobre os ombros da vítima, faz as vezes de carrasco e parece apertar com o peso de seu corpo o laço que estrangula o condenado.”

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    Malhação da efígie de Judas no Sábado de Aleluia - Rio de Janeiro, década de 1830 -
    Malhação da efígie de Judas no Sábado de Aleluia – Rio de Janeiro, década de 1830 – (Jean-Baptiste Debret, 1835 - Coleção Brasiliana Itaú/Reprodução)

    Curioso notar que, naqueles idos de 1831, essa tradição havia sido retomada recentemente, após proibição temporária por ocasião da vinda da Corte portuguesa:

    “Graças a um concurso de circunstâncias, vimos ressurgir, na quaresma, esse antigo divertimento caído em desuso há mais de vinte anos, ou melhor, proibido no Brasil desde a chegada da Corte de Portugal, sempre desconfiante dos ajuntamentos populares.”

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    Já era crescente naquela época a utilização dessas festividades para críticas políticas, com a mistura da figura de Judas com as de homens de governo:

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    “O temor é perfeitamente justificável ante a aproximação das novas constituições liberais, pois três dias antes de minha partida do Rio de Janeiro, no sábado de Aleluia de 1831, viu-se nas praças da cidade um simulacro do enforcamento de alguns personagens importantes do governo, como o ministro intendente geral e o comandante das forças militares da polícia.”

    Crianças participam da malhação do Judas no Rio de Janeiro dos anos 70 ou 80 -
    Crianças participam da malhação do Judas no Rio de Janeiro dos anos 70 ou 80 – (Blog "Saudades do Rio" de Luiz D./Reprodução)

    Ao longo dos anos, o boneco do Judas passou a também ser caracterizado como determinadas figuras odiadas pelas pessoas do bairro ou da população em geral. Se numa esquina de Rocha Miranda, o linchamento podia sobrar para um comerciante “careiro”, numa praça de Jacarepaguá, o boneco podia estar “homenageando” um vizinho rabugento e fofoqueiro. Mas algo que se via com muita frequência, por toda a cidade, eram bonecos representando políticos e autoridades do momento — desde um Vereador até o Presidente da República.

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    E você? Faria um boneco de Judas representando quem? 

    Boa Páscoa!

    *Daniel Sampaio é advogado, ativista do patrimônio, embaixador do turismo carioca e fundador do Instagram @RioAntigo.

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    **Texto em parceria com Rodolfo Amaral da Silva, estudante de História do IFCS/UFRJ.

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