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Por Daniel Sampaio: advogado, ativista do patrimônio, embaixador do turismo carioca e fundador do Instagram @RioAntigo
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A história das Vargens, o “Sertão Carioca”

Além de passear pela história dessa região que ainda guarda vestígios de seu passado rural, escolhemos três atrativos turísticos para você conhecer

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Atualizado em 14 Maio 2024, 10h26 - Publicado em 7 Maio 2024, 16h13

A região que hoje conhecemos como os bairros de Vargem Pequena, Vargem Grande e Camorim, na Baixada de Jacarepaguá, ao redor do Pico da Pedra Branca, pertencia à sesmaria Gonçalo Correia de Sá. Em 1667, sua filha Vitória Correia de Sá fez doação aos monges beneditinos. Trata-se de uma interessante exceção, pois, ao longo do início da colonização carioca, foram os jesuítas os desbravadores do interior da Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.

A imagem é uma gravura de Rugendas, do século XIX, que mostra uma moenda d’água sendo usada em um engenho de açúcar. Há animais na cena, como bois e cabras. Todo o trabalho está sendo feito por pessoas negras escravizadas.
Moenda de açúcar – Viagem Pitoresca ao Brasil – 1835 (Rugendas/Reprodução)

Por ali, Frei Lourenço da Expectação Valadares criou, no século XVIII, a fazenda Vargem Grande, na antiga Estrada de Guaratiba, cujas ruínas ainda existem no “Sítio das Pedras”, localizado no número 10.636 da atual Estrada dos Bandeirantes. A fazenda Vargem Grande produziu cana-de-açúcar, mas também carne, anil e materiais de construção (tijolos, telhas e madeira), usando mão-de-obra escravizada de origem africana.

No século XIX, houve o momento da inevitável expansão de cafezais que se deu por praticamente todo o território do então Município Neutro do Império (atual Cidade do Rio). Estamos falando de uma época em que a sucessão das terras se dava no âmbito mercantil. A região foi dividida, nos idos de 1891, por duas empresas adquirentes: o Banco do Crédito Móvel e a Companhia Engenho Central de Jacarepaguá. Já pela virada do século XX, com a extinção da “Companhia Engenho Central”, a totalidade das terras foi transferida para o Banco, que teve preferência na hora de arrematar todo o resto.

Ao longo do século XX, a região foi loteada em propriedades rurais menores e sua vocação rural desabrochou, desenvolvendo lavouras que ajudavam a abastecer os mercados e feiras livres da cidade. Outra atividade rural começou a acontecer pelas “Vargens”. A criação de cavalos tornou-se um grande hábito entre os proprietários de terra entre Camorim e Vargem Grande, e muitos aproveitaram para transformar numa atividade comercial.

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Vemos na imagem a capa de um livro chamado
Capa do livro “O Sertão Carioca” (1936), de Magalhães Corrêa – (website de Franklin Levy (leiloeiro oficial)/Reprodução)

As propriedades rurais de corte, de horticultura, muitas começaram a tornar-se modelo de estabelecimentos. E todo aquele ambiente bucólico, calmo, tranquilo, tornou-se a sensação na cidade. Muita gente passou a frequentar as “Vargens”, justamente para desanuviar, relaxar; uma mudança de ares dentro da própria cidade. Afinal, era o “Sertão Carioca”, termo cunhado pelo Professor Armando Magalhães Corrêa, um protetor da natureza, um pré-ambientalista — e também ilustrador naturalista do Museu Nacional — que também se preocupava com a população rural que vivia em estado de pobreza.

Esses trabalhadores rurais eram os sujeitos daquele lugar quase mítico, e a vida não era necessariamente sempre fácil para eles. Estamos falando de meados do século XX, uma época de muita instabilidade política e econômica que refletia quase diretamente nos preços dos alimentos. Era a carestia, a inflação, às vezes até o desabastecimento — males que nenhum governo da República Populista (1945-1964) conseguiu se livrar. E quem sofria mais era esse povo do confins cariocas — sofria, inclusive, com a falta de assistência médica, algo que só foi de fato solucionado com a criação, pela Prefeitura do Distrito Federal, em 1948, do Posto Rural de Assistência (nome do atual CMS Cecília Donnangelo), na Estrada dos Bandeirantes, 21.136.

A imagem é uma fotografia em preto e branco mostrando uma numerosa família de lavradores que viviam nas Vargens na metade do século XX. Nela aparecem três adultos (duas mulheres e um homem) e mais de dez crianças, incluindo três bebês.
Família de trabalhadores rurais das Vargens, na década de 1940 (Arquivo Público do Estado de São Paulo (APESP)/Reprodução)

O povo lavrador do Camorim e das Vargens era constantemente explorado pelo Banco do Crédito Móvel — aquele que havia sucedido os beneditinos e era dono de toda a terra. Os trabalhadores rurais muitas vezes eram surpreendidos com aluguéis que subiam escandalosamente, entre outros abusos. Chegou a existir uma Liga Camponesa de Jacarepaguá, da qual a região das Vargens fazia parte.

A segunda metade do século XX trouxe para a vizinha Barra da Tijuca (e, consequentemente, para a Baixada de Jacarepaguá) novas possibilidades de expansão e desenvolvimento. A cidade queria e precisava expandir-se rumo ao Oeste. No governo de Negrão de Lima (1968/1971), governador do extinto estado da Guanabara, o arquiteto Lúcio Costa desenhou seu plano piloto para a Barra. Não era um plano exatamente pensado para as Vargens e Jacarepaguá. Mesmo tendo sido pensado primordialmente para o miolo da Barra, inevitavelmente a Estrada dos Bandeirantes e as Vargens sofreram também o impacto de seus desdobramentos.

Ilustração que mostra o plano piloto da Barra da Tijuca, feito por Lúcio Costa, no final dos anos 1960.
Mapa da Barra da Tijuca feito por Lúcio Costa para o Plano Piloto da Baixada de Jacarepaguá – (Edmundo Musa/Arquivo pessoal)

Com a urbanização e a expansão da Barra da Tijuca, que se deu de maneira exageradamente veloz, especialmente a partir da década de 1980, Vargem Grande e Vargem Pequena sofreram consequências. Apesar de ainda preservar o aspecto tranquilo, arborizado e bucólico, a região sofreu um processo de urbanização e perdeu grande parte da vida rural. As Vargens da contemporaneidade parecem insistir na proximidade com a natureza (sobretudo do Parque Estadual da Pedra Branca) e no seu passado rural (basta ver quantos estabelecimentos de entretenimento e de lazer com temática rural existem por lá hoje) para construir sua narrativa atual como lugar(es) em nossa realidade predominantemente urbana e (quase sempre) caótica.

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Para manter a sua identidade e, sobretudo, sua camada de vegetação nativa, a região precisa olhar com cuidado para a expansão imobiliária e proteger suas áreas de proteção ambiental a todo custo. Segundo o Instituto Pereira Passos (dados de 2001), apenas 28,49% da área total do bairro é urbanizada e/ou alterada.

Um muro foi construído, em 2011, entre o condomínio e a favela, em Vargem Pequena.
Um muro foi construído, em 2011, entre o condomínio e a favela, em Vargem Pequena – (Custódio Coimbra/Agência O Globo)

Mas a expansão da população em direção às “Vargens” continua. Moradias de baixa renda que, por necessidade, se instalam em áreas de risco, construções que avançam sobre as matas, por vezes com a milícia como protagonista. Esses são problemas reais de Camorim, Vargem Pequena e Vargem Grande. E ainda nem comecei a falar de Saúde e Educação.

Vale também ressaltar que a região tem alguns atrativos turísticos muito interessantes, que carregam justamente toda essa história que comentamos. E tem também belíssimos atrativos naturais, culturais e gastronômicos. Vamos ver nossos três escolhidos?

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Capela de Nossa Senhora de Monserrate – Estrada dos Bandeirantes, junto à estrada do Mato – Vargem Pequena

A imagem é uma fotografia aérea que mostra uma bela paisagem, incluindo uma igreja colonial azul e branca, com pessoas em frente a ela, no que parece ser um casamento. Na colina, há vegetação tropical e um belo entardecer.
A Capela de Nossa Senhora de Monserrate, do século XVIII, uma das joias do Império, na Estrada dos Bandeirantes, em Vargem Pequena – (Thiago Esteves (stevez.com.br)/Reprodução)

Considerada uma das joias do Império, essa capela foi construída entre 1732 a 1768, e passou por restauro recente, inclusive do seu altar-mor, uma relíquia feita por artesãos populares do século XVIII. Ficava nas dependências de uma fazenda beneditina, mais especificamente em Vargem Pequena. A Igreja tem estilo colonial rural, em um outeiro de onde se descortina uma bela vista panorâmica da região a 130 metros de altura. Ela é um dos bens tombados pelo INEPAC (Instituto Estadual do Patrimônio Cultural) desde 1979. Hoje é uma das queridinhas dos casais para cerimônias.

IGREJA DE SÃO GONÇALO DO AMARANTE – Estrada do Camorim, 925 – Anil, Jacarepaguá

A imagem é uma fotografia de uma capela azul e branca muito simples. Há carros parados em frente.
A Igreja de São Gonçalo de Amarante, no Camorim, em Jacarepaguá: uma das mais antigas estruturas da nossa cidade, de 1625 – (Vinício Antônio Silva (obomdorio.blogspot.com)/Reprodução)

Uma das estruturas mais antigas da nossa cidade está bem ali no Anil, na Estrada do Camorim. A Igreja de São Gonçalo do Amarante é anterior à doação feita ao Mosteiro de São Bento. Foi construída em 1625, no Engenho do Camorim, a mando do próprio Gonçalo de Sá. Em 1667, sua filha doou as terras aos beneditinos e isso inclui também antiga capela, hoje elevada a Igreja. Sofreu modificações no final do século XVIII, aumentando volume, interior e até o telhado.

QUILOMBO CAFUNDÁ ASTROGILDA Caminho do Cafundá, S/N – Vargem Grande (Parque Estadual da Pedra Branca)

Quilombolas pintam mural no Quilombo Cafundá Astrogilda, em Vargem Grande.
Quilombolas pintam mural no Quilombo Cafundá Astrogilda, em Vargem Grande – (Revista Barra Legal/Reprodução)

Reconhecido entre 2013 e 2014 pela Fundação Palmares, o Quilombo Cafundá Astrogilda é um genuíno território de resistência do povo negro em pleno Município do Rio. Lá podemos encontrar os descendentes de Astrogilda, a matriarca da família Santos Mesquita. A colunista Rita Fernandes fez uma visita ao quilombo em março de 2021 e escreveu um relato fascinante que você pode ler clicando aqui. Esse lugar de suma importância para a herança africana carioca está coladinho com o Parque Estadual da Pedra Branca, que você pode acessar de lá mesmo (com direito a trilha, rio e cachoeira).  Além de poder visitar o Museu Cafundá Astrogilda, que guarda a memória do quilombo e do terreiro de Umbanda de Astrogilda, há também a experiência gastronômica com o Bar da Nilza e o restaurante Tô na Boa, ambos super recomendados no texto da Rita. Imperdível, não acham?

A imagem mostra pessoas caminhando numa trilha em meio à mata. Há placas com setas indicando as atrações naturais do local.
Trilhas do Parque Estadual da Pedra Branca percorrem caminhos feitos por gente escravizada que fugia das fazendas no Camorim – (Pedro Teixeira/Agência O Globo)

*Daniel Sampaio é carioca do Grajaú. Advogado, memorialista e ativista do patrimônio. Fundador do perfil @RioAntigo no Instagram.

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