Dia da mulher: memórias do machismo na imprensa carioca
O curioso caso da "Fon-Fon!", a revista carioca que fazia chacota da luta pelos direitos das mulheres no início do século XX
Por ocasião do Dia Internacional da Mulher, pus-me a pesquisar imagens para um “post” no Instagram do @RioAntigo. Encontrei a interessante imagem que ilustrou a capa da Revista “Fon-Fon!”, na data de 16 de maio de 1914. A gravura, assinada por “Raul” e por “Brun”, mostrava um grupo de seis sufragistas; atrás delas uma multidão. Minha impressão inicial foi a de que a “Fon-Fon!”, importante periódico semanal carioca que circulou entre 1907 e 1958, tivesse uma pauta bem avançada para 1914. Em seu slogan, a “Fon-Fon!” declarava-se um “Semanário alegre, politico, crítico e esfusiante”. Não era uma revista feminina, mas muitas de suas pautas navegavam pelo universo temático mais “leve”, reservado às mulheres de então — moda, comportamento, assuntos do lar.
Seguindo adiante um pouco mais na minha pesquisa, encontrei uma publicação da Comunicação Social da Prefeitura do Rio, chamada “Cadernos da Comunicação – Série Memória”, numa edição especial que comemorava o centenário da Revista “Fon-Fon!”. Nesse documento busquei o termo “sufragistas” e achei duas ocorrências. A primeira era já no prefácio, escrito pelo então Prefeito César Maia, que, exaltando a modernidade da revista, dizia:
“Sem esquecer o envolvimento da revista em campanhas como a das “sufragistas”, que defendiam o voto feminino”.
Mais à frente, aparecia a imagem da tal capa de 1914, com a legenda:
“Em maio de 1914, a revista esteve engajada na campanha das “sufragistas” que, inovadoramente, faziam a apologia do voto feminino no Brasil. Uma mídia, sem dúvida, avançada para aqueles tempos de machismo explícito e de preconceitos sexuais hipócritas.”
A junção daquela capa quase revolucionária com essa informação trazida por pesquisadores da ilustríssima Fundação Casa de Rui Barbosa — o texto tinha como base um encontro realizado nessa instituição, no ano anterior, por ocasião do centenário da “Fon-Fon!” — fizeram-me pensar com alegria que estava diante de uma publicação “à frente de seu tempo” por sair em defesa do feminismo numa época para nós tão distante.
Quis então saber mais sobre esse envolvimento dessa importante revista numa campanha que seria tão polêmica para a época. Já agradeço de antemão à minha, à sua, à nossa Biblioteca Nacional, que conta com uma excelente hemeroteca digital, lugar onde se pode vasculhar periódicos históricos do Brasil com uma tremenda qualidade de visualização.
Na primeira olhada, usando o termo “suffragista” (essa era a grafia da época) e também o termo “suffragettes” (tradução francesa usada também nos países anglófonos) para a busca nas edições históricas da “Fon-Fon!”, eis que me deparo com uma série de textos que desmentem abertamente esse mito de uma revista vanguardista defendido pela publicação da Prefeitura.
Em 15 de janeiro de 1910, a primeira menção da revista às sufragistas já dá o tom da cobertura histórica sobre o tema, em nota sobre a prisão de feministas inglesas que se recusavam a usar os uniformes da prisão, em protesto, permanecendo nuas:
“O peor é que, entre ellas, o número das velhas e das feias parece ultrapassar o das moças e bonitas!”
Em 10 de setembro de 1910, no obituário de uma sufragista alemã, a seguinte pérola:
“Suffragistas são todas as feministas que no voto, vêem o meio para obter aquellas reformas sociaes e civis, que inutilmente as mulheres reclamam.”
Em outubro do mesmo ano, uma nota sobre um cortejo de suffragettes em Londres dá destaque à beleza de algumas das manifestantes, subestimando o movimento:
“Tambem as suffragistas conhecem o valor da belleza e como ella serve mais do que qualquer outro argumento para garantir a atenção masculina.”
Os anunciantes da “Fon-Fon!” não deixavam barato. No anúncio do tônico capilar “Tricofero de Barry”, de 1911, o texto publicitário exaltava as “propagandistas” desse produto:
“As mulheres discretas fogem das vulgaridades e politiquices, para se dedicarem a outro gênero de especulações e propagandas, mais em harmonia com as delicadezas do seu sexo.”
Na edição de 9 de março de 1913, um trecho de texto assinado pelo pseudônimo “Gustave Téry”:
“Não há nada mais lisonjeiro para o homem do que o feminismo. (…) Quando uma mulher se torna feminista, é que não póde mais conter a immensa admiração que o homem lhe inspira.”
Em julho do mesmo ano, a “Fon-Fon!” traz a “brilhante” conclusão:
“É curioso registrar que esse movimento feminista, que se alastra por todo o mundo, deixa inteiramente indifferente a mulher brasileira. (…) Talvez seja porque a mulher brasileira tem juizo de mais; ou ambição de menos. Qualquer termo desta alternativa lhe é lisonjeiro.”
Em 11 de julho de 1914 — ou seja, menos de dois meses após a capa em destaque —, o pseudônimo “V. de C.” diz o seguinte:
“Uma estatistica informa que a quasi totalidade das suffragettes é constituida assim: solteiras cincoenta por cento; divorciadas, vinte e cinco; viuvas, vinte e cinco… Ora ahi teem os senhores tudo dito.”
E como se não bastasse tamanho absurdo, “V. de C.” acrescenta:
“Um jornal inglez (…) acaba de suggerir o meio eficaz para o extermínio do suffragismo na Inglaterra: (…) deportar as suffragistas para as colonias, onde receberiam por esposos os mais belos especimens da raça negra.”
Cinco dias depois, a revista recomenda a uma sufragista inglesa, conhecida também por sua beleza, que ponha de lado o feminismo e “que se contente em ser uma linda rapariga, pois a natureza deu-lhe um delicioso palmo de rosto”.
Já em 1932, um texto assinado pelo pseudônimo “Andrenio”, descreve uma cena de protesto sufragista em Londres, duas décadas antes:
“Naquele tropel de mulheres alvoroçadas, a maioria era de feias, velhas, pobremente vestidas. Adivinhava-se nellas a amargura das vidas fracassadas, o rancor pelo homem, que não lhes déra o amor sonhado e pela sociedade, que tambem não lhes déra um lar, um home seguro e confortavel.”
Encontrei muitos outros textos, mas esse foram os que mereceram destaque, pela maior intensidade do absurdo. Impressionou-me a incidência de palavras pejorativas para descrever as sufragistas, como “histéricas”, “energúmenas”, “loucas”, “bizarras”, “violentas”, “criminosas”, “arruaceiras” e “masculinas”. Curiosamente, a revista “Fon-Fon!” era considerada um semanário ilustrado de conteúdo crítico e inovador, uma publicação feita por intelectuais simbolistas, homens que contestavam o positivismo predominante no pensamento de então. Continuavam sendo homens; os tais “homens de seu tempo”, quando o machismo era coisa de gregos e troianos.
Quando muito, os homens da redação de “Fon-Fon!” exaltavam o sufragismo suave, tranquilo e pacífico; aquele das mulheres belas e femininas. Eram homens ditando às mulheres como deviam fazer um feminismo que fosse respeitado por eles. Para mim não resta dúvida: está desmentido o mito de que a revista “Fon-Fon!” teria sido uma “mídia avançada”, “avant guarde”, e que teria se envolvido na luta pelo direito ao voto feminino. Pelo contrário, a famosa revista fez campanha “do contra”, em um ataque aberto e constante às corajosas e pioneiras sufragistas — um desserviço às mulheres do nosso país, que conquistaram o direito ao voto apenas em 1932.
*Daniel Sampaio é carioca do Grajaú. Advogado, memorialista e ativista do patrimônio. Fundador do perfil @RioAntigo no Instagram.