Do Argentino à Urca: os bairros que o Rio inventa
Das antigas freguesias às mais novas divisões administrativas, a formação do mapa urbano carioca ajuda a contar muito da nossa história

Nasceu mais um bairro no Rio. Aliás, dois. Em menos de um ano, o mapa da cidade ganhou novas bordas com a criação da Barra Olímpica e, mais recentemente, do bairro Argentino. Sim, Argentino — nome herdado de um antigo loteador, não do país vizinho. E eu, que sou fanático pela história da expansão urbana do Rio, fui puxar o fio dessa história para entender como, afinal, surgem os bairros cariocas. E por que ainda hoje a cidade insiste em se redesenhar.
O Rio sempre teve esse impulso meio orgânico, meio político de mexer em sua própria geografia. No tempo da colônia, não existia “bairro” como conhecemos hoje. O que havia eram freguesias, divisões ligadas à estrutura da Igreja Católica, que organizavam a cidade em torno das suas paróquias. As Freguesias de São José e da Candelária abrangiam o núcleo urbano original, no Centro. Outras, como Espírito Santo, Santa Anna e Santa Rita, ajudaram a estruturar o crescimento inicial da cidade em torno de igrejas e caminhos de fé. Fora desse miolo central, vinham os arrabaldes — zonas de transição entre o urbano e o rural, onde pequenas chácaras, engenhos e vilas iam surgindo aos poucos, quase sempre impulsionados por caminhos estratégicos, como a Estrada do Andarahy (atual Tijuca) ou a Estrada Real de Santa Cruz. Os arrabaldes, por definição, eram flexíveis: cresciam e encolhiam conforme o Rio precisava respirar. Sintetizando o pensamento do geógrafo Maurício de A. Abreu, em seu clássico Evolução Urbana do Rio de Janeiro, a cidade expandia-se por meio de prolongamentos descontínuos, quase sempre associados a interesses privados ou ao improviso do poder público.
Foi só com a chegada do século XIX, do bonde, do trem, da especulação imobiliária e da elite querendo sombra e água fresca, que as zonas começaram a ganhar nome, forma e personalidade. Botafogo, por exemplo, começou a se desenhar como bairro quando passou a atrair famílias ricas em busca de tranquilidade, especialmente com a abertura da Estrada de Botafogo e a urbanização das margens da enseada.
Já Copacabana só começou a existir como destino urbano após a construção do Túnel Velho, em 1892 — que conectou a zona sul ao que era, até então, uma área de difícil acesso. O loteamento logo foi impulsionado pela construção de novas vias, pelos primeiros prédios e, claro, pela orla. O centenário Copacabana Palace Hotel é um símbolo sofisticado dessa novidade dos anos 1920, o interesse do Brasil e do mundo pelas praias.
A Urca é um caso ainda mais emblemático de invenção urbana: o bairro foi literalmente criado sobre um aterro na década de 1920, em um projeto de loteamento idealizado pela Companhia Urbanizadora Carioca, que deu nome ao local. Em 1912, já havia sido inaugurado ali o bondinho do Pão de Açúcar — um marco não só turístico, mas também cinematográfico, que ajudou a construir a imagem encantada do bairro em filmes e cartões-postais. Anos depois, viria o célebre Cassino da Urca, com suas noites glamourosas e uma então desconhecida Carmen Miranda se lançando ao estrelato.

E o processo de criação de bairros não se limitou à zona sul. Em outras regiões, ele também refletiu interesses estratégicos e sociais: na zona norte, por exemplo, o bairro de Higienópolis surgiu nos anos 1930 como um loteamento estilo “cidade jardim”, feito pela imobiliária “Higyenópolis”. Já em Campo Grande, na zona oeste, áreas como Cosmos e Paciência se consolidaram a partir da expansão da malha ferroviária e de loteamentos populares nos anos 1930 e 1940 — transformando antigos núcleos rurais em bairros periféricos, mas densamente habitados.
Mas nem tudo nasce com pompa. O Argentino, por exemplo, ficou décadas no limbo. A região, um trecho de Brás de Pina na Zona Norte, foi loteada nos anos 1950 por um senhor chamado Argentino Lamas — daí o nome. Com o tempo, o lugar virou um microcosmo com vida própria: ruas bem definidas, comércio local, identidade consolidada. Só que, oficialmente, o bairro não existia. Era como um lugar fantasma no mapa da cidade. E como cidade que não se reconhece não se cuida, os moradores começaram a sofrer: aplicativo de transporte que não chega, correspondência que não chega, valorização imobiliária que não acontece. A invisibilidade urbana tem dessas ironias.
A solução veio com organização. A AMBA — Associação de Moradores do Bairro Argentino — puxou o movimento para colocar o bairro no papel. A proposta foi para a Câmara e, no mês passado, nasceu oficialmente o menor bairro do Rio, com cerca de 1.500 habitantes. Pequeno no tamanho, mas gigante no sentido simbólico.
Pouco antes disso, em 2024, foi a vez de uma outra “criança” nascer com DNA mais publicitário: a Barra Olímpica. Ali, no entorno do Riocentro e do Parque Olímpico, já havia uma urbanização consolidada desde os Jogos de 2016. Mas a região ainda era um pedaço meio solto entre Barra da Tijuca, Camorim e Jacarepaguá. Criar um novo bairro foi uma forma de dar nome (e identidade) ao tal legado olímpico — algo que, convenhamos, já foi mais inspirador. A oficialização veio com promessa de valorização, serviços mais claros e, claro, uma tentativa de fazer a cidade lembrar que aquele canto ainda existe, mesmo depois dos holofotes.
Curioso como essas criações recentes refletem o espírito mutante da cidade. Os bairros do Rio são como capítulos de um romance que ainda está sendo escrito — e reescrito. Cada um com sua origem: alguns nasceram de interesses políticos, outros da luta comunitária. Uns vieram com túnel, outros com remoção. Tem bairro que virou outro, tem bairro que se apagou, tem bairro que nunca existiu oficialmente, mas vive no imaginário — e na boca do povo.
Em 23 de julho de 1981, um decreto municipal promoveu uma ampla reorganização administrativa no Rio de Janeiro, redefinindo limites e oficializando a criação de dezenas de bairros. A medida buscava dar respaldo legal a áreas que já tinham vida própria, mas ainda não constavam no papel. Bairros como Anil, Tanque, Cidade Nova, Freguesia (Jacarepaguá), Andaraí e muitos outros passaram a figurar oficialmente no mapa carioca, consolidando identidades urbanas que vinham sendo moldadas informalmente ao longo de décadas. O Jardim Botânico, por exemplo, só foi reconhecido como bairro nesse processo — até então, constava oficialmente como parte da Gávea. Já a Rocinha, maior favela da América Latina e com características urbanas consolidadas, ficou de fora dessa regularização.

E por falar em bairros que existem mais no sentimento do que no papel, vale destacar dois pequenos grandes exemplos: o Bairro Peixoto e a Aldeia Campista.
O Bairro Peixoto é um oásis de tranquilidade encravado no coração de Copacabana. Oficialmente, não é um bairro — está dentro de Copacabana — mas quem caminha por suas ruas arborizadas e silenciosas sente que está em outro lugar. A área pertencia à chácara do comendador português Paulo Felisberto Peixoto da Fonseca, que, sem herdeiros diretos, doou os terrenos para instituições de caridade em 1938. Com a condição de que as construções não ultrapassassem três andares, o que ajudou a manter o charme bucólico do lugar. Em 1989, a prefeitura criou a Área de Proteção Ambiental do Bairro Peixoto, tombando dezenas de imóveis e limitando a altura das construções a 15 metros. Hoje, o bairro é conhecido por sua atmosfera pacata, com a Praça Edmundo Bittencourt como ponto central, e por resistir ao ritmo frenético de Copacabana ao redor.
Já a Aldeia Campista é um sub-bairro que se espalha entre a Tijuca, Vila Isabel, Andaraí e Maracanã. Surgiu no final do século XIX, quando o usineiro Domingos Pereira Nunes loteou a área para abrigar operários da Fábrica Confiança. Com ruas como Pereira Nunes, Gonzaga Bastos e Adalberto Aranha, a região desenvolveu uma identidade própria. Foi cenário das crônicas de Nelson Rodrigues, que morou ali e se inspirou no cotidiano da Aldeia para escrever Engraçadinha e outras histórias. Apesar de não ser reconhecida oficialmente como bairro, a Aldeia Campista mantém viva sua memória e cultura, sendo um exemplo de como a história e o afeto moldam os espaços urbanos.
Atualmente, o Rio de Janeiro tem 166 bairros oficialmente reconhecidos. Esse número, no entanto, está longe de ser definitivo. A cidade continua a ajustar seus contornos, ora por demandas da população, ora por interesses administrativos. E esse movimento constante revela mais do que mudanças no mapa: mostra como o território também é construído por memórias, lutas e identidades locais. Reconhecer um bairro é, muitas vezes, reconhecer uma história que já existia — e que apenas esperava seu nome ser colocado no papel.
*Daniel Sampaio é advogado, ativista do patrimônio cultural e criador de conteúdo. Fundou o Instagram @RioAntigo em 2012 e a ONG Instituto Rio Antigo em 2022.