Um novo turismo na Chapada Diamantina
Como a agricultura vem impulsionando o turismo na região
Na corrida sulista rumo ao Centro, Norte e Nordeste, que se deu nos anos 80, chegaram o avô, o tio e o pai de Fabiano Borré, naquela Chapada que “era uma casa muito engraçada”: não tinha telefone, estrada, nada.
Vinham de São Paulo das Missões, no Rio Grande do Sul, em busca de terras para a soja. Compraram um naco de terra e trouxeram uma pequena equipe de pedreiros e tratoristas para desbravar o grande nada.
Tentaram uma ou duas vezes e, quando a cultura da soja não funcionou, ou ainda a do feijão sequeiro, decidiram plantar batatas. Nascia a super bem-sucedida Fazenda Progresso, hoje imensa fornecedora de produtos frescos para o Nordeste.
Ao vencedor, novos projetos.
Primeiro veio o café e, depois de intensa pesquisa e investimentos que já duram 10 anos, a família Borré lançou a vinícola UVVA no ano passado, nessa Bahia que a gente não reconhece. Ali faz frio, há coelhos e frutas vermelhas.
A técnica da dupla poda, que “desvia” a época de produção da videira para o Inverno, foi a grande responsável pela abertura dessas fronteiras improváveis. Foi ela que fez brotar vinícolas em Minas, Espírito Santo, São Paulo, Rio de Janeiro e outras regiões sem tradição na produção de vinhos.
MUCUGÊ
Mucugê, a cidade mais próxima da vinícola, já viu muita montanha russa econômica desde a descoberta da vocação diamantífera, em 1844. Ao longo dos anos, a cidade prosperou ou encolheu drasticamente ao sabor do interesse mundial nos seus diamantes, fosse para joias ou para ferramentas e perfuratrizes (o diamante carbonado), em momentos de grande demanda industrial.
Já nos últimos 40 anos, a salvação da região veio pelas mãos calejadas do agronegócio. E agora, com um bom empurrão da família Borré, Mucugê mira num futuro de enoturismo.
Euvaldo Ribeiro Júnior é professor do Município. Sim, de português, história, geografia, matemática, inglês e o que mais aparecer. Também foi Secretário de Turismo, contribui com pesquisas científicas sobre a fauna e flora da região e, de quebra, se dispôs a ser nosso guia pela cidade tombada e multicolorida de 12.000 habitantes.
Para chegar em Mucugê a partir de Salvador, o visitante tem que enfrentar mais 400km em estradas não tão suaves para os quadris. Ainda assim, o Professor afirma que quase não se acha imóveis para comprar, dado o interesse crescente dos baianos que têm ali uma “terceira casa” de montanha, já que a segunda é na praia.
A cidade tem aquela escala adorável de coisas que se pode contar nos dedos: visita-se a igreja antiga (construída de 1850 a 1886), o coreto, a pequena sede da Filarmônica 23 de Dezembro, datada de 1901, e um cemitério de um estilo interessantíssimo, que mistura o gótico ao bizantino com a dramática parede gigante da Serra do Sincorá, como fundo. Mas lindo mesmo é o conjunto de casinhas de cores vibrantes, ladeadas pelo calçamento de pedras de um Brasil colonial.
Andar devagar naquele chão incerto, arredondado pelo tempo, coloca a gente num compasso que acalma a cabeça e faz prestar atenção às pequenas coisas.
GASTRONOMIA REGIONAL
A gastronomia de Mucugê é um diamante em lapidação. A oferta principal de restaurantes ainda gira em torno da tal “cozinha internacional”, hambúrgueres, pizzas e preparações italianas que pouco valorizam a riqueza regional, mas há sinais que apontam para um caminho com mais personalidade.
As manhãs no restaurante Paraguassu, no Hotel Boutique Refúgio na Serra eram muito felizes e feitas de tapiocas, cuscuz, queijo coalho, banana da terra, raízes, sucos e frutas da região e uma rabanada de matar. A cereja do bolo? os ótimos cafés Latitude 13, da Fazenda Progresso.
Tanto a cozinha do Refúgio na Serra quanto o restaurante da vinícola UVVA – chamado Arenito – são comandados pelo chef André Sequer, um carioca que cresceu na Bahia. Algumas de suas criações valorizam ingredientes dali, como o bao recheado com carne de panela de entranha de sol Black Angus, aioli, pesto rústico e vinagrete de banana da terra; também o mix de preparações de batatas da Chapada (defumadas, com queijo, em pétalas…); ou ainda o cordeiro com baião de dois com arroz vermelho e feijão local, com farofa de castanha, crisps de cebola e geleia de pimenta artesanal; e o famoso ‘godó de banana verde’, comida típica dos garimpeiros, levada até a serra antes da cata de diamantes – um guisado de banana da terra verde, ensopada com carne de sol e regada ao molho denso de vinho tinto.
A cozinha de raiz se acha em restaurantes de comida caseira a quilo, como é o caso do Dona Nena, que existe há 44 anos. “Abriu junto com a chegada do Banco do Brasil”, nos disseram. Ali, há mesas e cadeiras de plástico e cada um se serve diretamente das panelas do fogão a lenha. Cheguei em dia de buchada de bode, mas fiz um animado desvio para saladas, jiló, refogados de mamão verde e de quiabo, maxixe, abóbora, couve, farofa de miúdos e feijão andu e uma saborosa carne de sol. Tudo dali, de perto, como deve ser, com um colorido de fazer inveja a qualquer restaurante de cidade grande. Tem pimenta?, perguntei. Tem sim, mas essa é “de arde”. Ardeu e adorei.
Achei outros pratos típicos no restaurante da Cláudia. Tem “cortado de palma”, tradução literal de palma forrageira picadinha e depois refogada. Fosse na cidade grande, a gente achava comer cacto exótico e fazia fila. Ali, o povo é mais sábio e come todo dia. Serve ainda “cortado de abóbora”; coxinha, moqueca e outros preparos com a jaca abundante na região; carne de sol; costelinha com molho de rapadura, coisa e tal.
No Beco da Bateia, um animado ponto de pizzas que também tem quintas de acarajé (para quem tem saudade da Bahia litorânea), bom mesmo é parar para os pastéis de carne de sol desfiada, banana da terra, queijo coalho, parmesão e requeijão, regados a cerveja.
LOJAS
No Empório do Sítio Cheiro de Mato, encontrei aguardentes, licores, geleias, queijos meia-cura da cidade de Cascavel e frios de Morro do Chapéu, além de vinhos da Chapada Diamantina (que já conta com outras 4 vinícolas além da Uvva: a Vaz, a Reconvexo, a vinícola do Morro e a Santa Maria).
Mais adiante, na Loja da Pousada Café Preto encontrei ótimos cafés da região e cervejas locais como a Session Ipa da Cervejaria Sincorá e uma Maratinga (cerveja de maracujá da caatinga) da Cervejaria Gravetero. Do outro lado da rua, a mesma Pousada vendia alguns sorvetes, feitos no município vizinho de Andaraí. Pedimos do quê? De mucujê, claro, o fruto de nome indígena que batizou a cidade, um primo da mangaba.
Uma parada doce aconteceu na Adamas (diamante, em latim), chocolateria artesanal “bean to bar” comandada por Letícia Oliveira, que usa cacau catongo de Barra do Rocha. Letícia é mulher animada e falante, que conduz degustações dos potentes produtos que tempera ali mesmo. São chocolates feitos com maracujá, pimenta, café, laranja, morangos e outros ingredientes locais.
AGRITURISMO/ ENOTURISMO
CIRCUITO DE FRUTAS VERMELHAS
Nessa Bahia de 1.000m de altitude que a gente não reconhece, há um circuito de frutas vermelhas. Ao contrário do que muita gente acha, precisam de um tanto de frio para se cultivar, mas não dão só no Inverno. Existem o ano inteiro e é no Verão que estão mais doces.
Edilson Santos Oliveira, do Sítio Frutas Especiais, é apenas um dos produtores que faz parte da Rota das Frutas Vermelhas de Mucugê. Colhe umas 200 caixas de amora por semana e mais umas 50 ou 60 caixas de framboesa. As plantas do mirtilo ainda são jovens e farão um ano em outubro; para estarem plenamente produtivas, demoram mais uns 3. Ainda assim, os mirtilos que eu provei no pé eram do tamanho de jaboticabas.
Além deles, um cacto de pitaya amarela tinha a bucólica vista da represa com um punhado de bois e a Serra do Sincorá ao fundo. Comi a fruta depois de um suco de amoras e da geleia feita por Mari, mulher do “Seu” Edilson. Apesar do sabor da deliciosa compota ainda na boca, a pitaya conseguiu estar ainda mais doce.
VINÍCOLA UVVA
A vinícola tem capacidade de produzir 260.000 garrafas por ano, mas está só no início da caminhada e aposta fortemente no enoturismo para impulsionar seus vinhos.
Degustamos seus quase 20 rótulos. Foram cabernet sauvignons, francs, merlots, petit verdots e outros, entre vinhos espumantes e tranquilos. Gostei sobretudo daqueles com menos barrica, como o Chardonnay 2022, com leveduras autóctones, que torço para ser lançado em breve, o microlote de Syrah 2021 e o Pinot Noir 2022, mais frescos. Dos mais barricados, gostei do Cabernet Sauvignon 2018, o vinho que foi responsável por fazer o projeto da vinícola deslanchar.
A UVVA não poupou investimentos. Além da bela arquitetura contemporânea (projeto de Vanja Hertcert), do restaurante com vista incrível, móveis de designers como Sérgio Rodrigues, Jader Almeida e Arthur Casas, estão longe de todo tipo de serviço, então fazem ali seu engarrafamento e têm laboratório próprio. A preocupação com sustentabilidade é grande, com afastamento entre paredes para conforto térmico e acústico, muita incidência de luz natural, que reduz necessidade de climatização e canalização de água das chuvas para a irrigação.
Minha maior surpresa foi a sensacional e inesperada mostra do artista baiano Marcos Zacariades, disposta em salões ao lado da cave e totalmente integrada à história e sofrimento da região. Algumas peças do artista, além de fotografias e artesanato local, também podem ser encontradas pelos salões do hotel Refúgio na Serra, sob o impecável comando de Cristina Cagliari, esposa de Fabiano Borré.
O principal turismo de Mucugê, até hoje, foi o ecológico, feito de trilhas, cachoeiras e das ricas fauna e flora da região. Além dele, alguns eventos sazonais como o Festival de Forró, em outubro e a festa de São João ou a Fligê, feira literária de Mucugê, já na 5ª. edição, que levou nomes de peso como Conceição Evaristo e Arnaldo Antunes. Mas os pesados investimentos do agronegócio, a despeito da distância e das carências de infraestrutura, prometem ampliar a voz da cidade.
Mucugê vem… e eu já escuto os seus sinais.