Terminada a reunião, não havia muito a fazer em Heidelberg além de comer aspargos brancos. Na região de Baden-Württenberg, que abrange a cidade, só se fala disso: há uma rota turística de 136 quilômetros de aspargos, festival do aspargo, a maior feira de aspargos da Europa, eleição anual da rainha do aspargo e o escambau. Eu precisava mesmo era de um café preto.
Esbarrei numa cafeteria no meio do nada, que por acaso era a única que servia um coado, na cidade. Meus olhos grudaram nas prateleiras.
– Opa! Quem faz sua torra é a La Cabra? Adoro. – comentei com o barista.
– Sim, são nossos torradores. Conhece a La Cabra??? De onde você é?
– Do Brasil.
– Ah! Tá explicado. Pouca gente comenta sobre torra por aqui.
Queria retrucar que pouca gente comenta sobre torra, também no Brasil, mas preferi guardar aquele olhar bonito sobre meu país e retribuir a gentileza com um sorriso.
Somos os maiores consumidores e produtores de café no Mundo. Talvez por isso não liguemos tanto para a bebida. A idade média do bebedor iniciante está cada vez mais baixa, já começamos a consumir aos 15 anos de idade, tomamos café 3 vezes ao dia, mas conto nos dedos quem mergulha – com o perdão do trocadilho – na viagem que é o café.
Quem não conhece o assunto sequer sabe por onde começar, mas as grandes marcas de café industrializado há muito entenderam que a TORRA seria o primeiro diferencial marqueteiro percebido pelo consumidor iniciante como “qualidade”. Daí pipocarem nas embalagens os termos “torra clara”, “torra clássica” e outros.
Por muito tempo, infelizmente, a torra excessiva foi usada para esconder defeitos e impurezas do café mal colhido e processado, daí a nossa referência de bebida escuríssima, com gosto tão queimado que tanto fazia ser uma cereja de café, uma pedrinha de rio ou um parafuso.
Então surgiu o termo “cafés especiais” que, em resumo grosseiro, são aqueles bem produzidos, recém-torrados e devidamente preparados, que atingem ao menos 80 pontos na avaliação sensorial feita por especialistas.
E qual o papel da torra num café especial?
Como diz Emerson Nascimento, barista competente que tem prêmio para tudo que é lado, a melhor analogia é uma corrida de revezamento com bastões: “se a equipe que está na frente passa o bastão para o último atleta, mas ele o deixa cair, de nada adiantou o esforço anterior e todos perdem”.
O trabalho mais duro começa lá atrás, claro, com o produtor, que tem de escolher variedades, encarar clima, terreno, plantio, colheita e beneficiamento, mas o papel do torrador na corrida é tirar o melhor, tanto do sabor quanto das características do grão que lhe é confiado.
Na sua torrefadora carioca Five Roasters, o café é tratado como um “indivíduo”. Cada espécie, variedade, origem e processo vai resultar em um café diferente e seu maior desafio é achar a torra ideal.
Como um mago da auto-ajuda cafeeira, Emerson é o cara que ajuda o grão a se tornar sua melhor versão. E isso vale também para os tipos de extração. Sim, há torras específicas para um café filtrado, expresso ou bebido com leite, mas em alguns casos, é possível fazer uma “omni roasting”, curva de torra que consegue trazer bons resultados em todos os tipos de preparação. E mais: um mestre de torra competente também nos economiza um trabalho danado, escolhendo aqueles produtores de excelência que fazem só pequenos lotes que dificilmente chegariam às nossas mãos.
Laís Aoki, sommelière do Oteque, entusiasta e estudiosa da bebida, diz (e eu concordo) que a preferência do consumidor médio à mesa ainda é a torra mais “carregada” que empresta mais corpo e notas de chocolate, caramelo e frutas secas. Mas garante que o perfil vem se ampliando: “há gente interessada em perfis mais originais em todo o Brasil. Ceará, Curitiba e Brasília, por exemplo, vêm crescendo muito como mercados de cafés especiais. E mais: muitas cafeterias mundo afora agora fazem a torra dentro de casa”, como é o caso do próprio Emerson, com sua Coffee Five ou a CoLab, aqui no Rio de Janeiro.
Laís comenta que as cafeterias procuram ter cafés ‘de entrada’ – aqueles do dia-a-dia, com torra mais escura e caramelada – mas aos poucos orientam seus consumidores a migrar para torras mais claras, que fazem bebidas mais frutadas e com mais acidez. É um investimento de longo prazo, na ampliação do leque.
No seu serviço de salão, a sommelière prefere a torra mais fresca possível e com um perfil médio-claro, que combina com a cozinha do restaurante. Para os estrangeiros, em especial, fala do privilégio que é estarem tão próximos das regiões produtoras, e procura quebrar o mito de que café brasileiro só serve para dar corpo à bebida, e não complexidade e elegância. Uma graça de embaixadora.
A torra é só o início da viagem. Daí você continua passeando por grãos e suas notas de degustação, o terroir de cada região, o processo de cada produtor, ampliando seu perfil sensorial. Aviso que é caminho sem volta. Além da carioca Five Roasters, adoro o trabalho da Tocaya, que também faz uma ótima seleção de produtores e micro-lotes ou da Lucca Cafés Especiais (e todas vendem pela internet, para quem não quer sair de casa).
E se você acha isso tudo uma bobagem e vai continuar pedindo só “um cafezinho”, não importa… Não estamos aqui pra torrar a paciência de ninguém.