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Cristiana Beltrão

Por Cristiana Beltrão, restauratrice e pesquisadora de gastronomia e alimentação Materia seguir SEGUIR Seguindo Materia SEGUINDO

Cadê o pão do meu couvert?

O pão agora é prato

Por Cristiana Beltrão Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
30 jul 2022, 17h30
Couvert
 (Cristiana Beltrão/Arquivo pessoal)
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Vinha duro, velho, seco e escoltado, quem sabe, por um tanto de manteiga rançosa. O caminho foi longo, desde aquele lugar esquecido até o pódio iluminado que o pão ocupa hoje, em bons restaurantes.

No Brasil, terra de mandioca e beiju, demorou a pegar. Afinal, era coisa de europeus e só apareceu com força em restaurantes no século 20 com o nome de “pão francês” (apesar da receita bem brasileira), tentando fazer as vezes de uma espécie de baguette.

Serviu, durante muito tempo, para abrandar a impaciência dos famintos como um “estofo” que convenientemente preenchia o estômago no lugar de ingredientes mais caros. Natural que aquele “cavalo dado” terminasse, muitas vezes, num produto de baixa qualidade.

Nos últimos 30 anos, à medida que restaurantes passaram a investir em ingredientes, maquinário e padeiros hábeis, parecia injusto que o pão não fosse cobrado, mas essa passagem psicológica não foi assim tão fácil.

No fim dos anos 90 e início dos anos 2000, me lembro claramente dos protestos constantes em torno da cobrança do couvert que, para acalmar os mais revoltados, adicionou alegorias e adereços para justificar o preço. Passava, então, a contar com antepastos, patês, pastinhas e, também, com pães em maior número de preparações, fossem focaccias, árabes, italianos ou ciabattas. A verdade é que, a partir daquele momento, a etapa tinha de valer a pena.

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E hoje?

Desconfio que a pandemia tenha sido a maior responsável pela mudança na ordem das coisas. Literatura e tutoriais fartos fizeram surgir um consumidor mais crítico, uma infinidade de padeiros caseiros de olho na crosta estaladiça, nos furos da fermentação natural, escolha dos grãos ou densidade da massa. E ainda que houvesse gente sem vocação alguma para a cozinha, a comida foi um dos maiores prazeres do confinamento e o pão, sem dúvida, o mais quotidiano. Para os chefs, que se habituaram a priorizar outras receitas, desenvolver essa habilidade durante a pandemia virou alegre obsessão.

Além disso, nada como ter boas referências para elevar a média do mercado! A Slow Bakery, orgulho carioca que produz tantos pães que faço questão de ter em casa, foi (e é) uma das responsáveis pelo padrão que muitos restaurantes buscam ao desenvolver o produto em seus restaurantes. Palavra de vários cozinheiros.

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A verdade é que o pão em restaurantes é infinitamente superior ao de 20 anos atrás e o imenso trabalho de retaguarda por trás do produto merecia ser reconhecido. O movimento que vejo hoje tira o pão do lugar banal de “distração”, daquele que acalma a fome enquanto os clientes investigam no cardápio o que querem comer, de fato, e dá a ele o papel de protagonista.

Dificilmente, num restaurante à la carte, perderá o seu lugar de abre-alas na cabeça do consumidor, mas nos menus degustação mundo afora foi caminhando para terceiro, quarto, quinto e, por vezes, último passo do cardápio fechado. Entre outras vantagens, o chef consegue mostrar suas habilidades com outros ingredientes mais leves em etapas anteriores, sem a saciedade que o pão emprestaria se viesse logo no início dos trabalhos.

Seja em Nova York, na Cidade do México ou em Lisboa, a moda agora é criar suspense antes do momento-pão. Aliás, adorei que o recém-inaugurado “Marlene,” (sim, Marlene vírgula) da chef Marlene Vieira, em Lisboa, além de trazer pão de centeio e trigo integral como quinta etapa de um menu de 7 passos, entrega ao cliente a receita da broa de milho branco da avó da chef junto com a conta. Um alento em tempo de câmbio nas alturas.

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No Amana, em Niterói, uma ótima (e recente) descoberta, o chef Leonardo Guida prepara tudo de cabo a rabo na casa de apenas 12 lugares, inclusive o delicioso pão sourdough (feito com fermento natural) que tem 20% de grãos de centeio e é feito no forno a lenha. Vem no décimo curso, depois de nove “snacks” (pequenos pratos) feitos basicamente de proteínas leves. Cheguei até lá sem esforço e o pão veio num momento perfeito de abraço. Acompanhava a bottarga curada na casa, berinjelas defumadas com castanhas de caju e picles de abobrinha com algas.

No novo Lasai, os pães vêm no meio do caminho, depois de várias pequenas entradas, mas antes dos pratos principais. A etapa é caprichada, com pão de fermentação natural e brioche divinos, acompanhados de manteiga fermentada à moda antiga e do requeijão – paixão antiga do chef Rafa Costa e Silva – feitos na casa. E a alegria foi ainda maior quando reencontrei o antigo pão de queijo recheado com aligot, do endereço antigo do chef.

Não importa…

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Seja com ou sem fermento, venha no início, no meio ou no fim, se falta pão, falta algo em mim.

Que venha!

 

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