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Por Cristiana Beltrão, restauratrice e pesquisadora de gastronomia e alimentação
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Do maître vassalo ao maître-robô

Os desafios do salão moderno

Por Cristiana Beltrão Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 19 nov 2023, 11h43 - Publicado em 18 nov 2023, 13h15

Minha ranzinzice cresce devagar e sempre, como meus cabelos. Me pergunto se vou terminar aquela caveirinha cheia de fios que espetam o mundo, mesmo depois de morta.

Há muito tempo, tive um maître que era um perigo: bastava eu piscar que lá ia ele arrumar um arroz à piemontesa – um produto que jamais tive no cardápio – para a cliente da mesa seis. Afinal, era uma velhinha, estava com desejo e nós tínhamos os ingredientes. A verdade é que ele fazia o mesmo para a novinha, para o faminto, para o indeciso, entre 20 outros…

Essa figura caricata ajuda a ilustrar as mudanças no papel desse importante elo entre cliente e cozinha, nos últimos 20 anos.

Herdamos (na teoria) a hierarquia francesa nos restaurantes, mas a relação entre salão e clientes, no Brasil, sempre foi diferente: ao contrário do modelo europeu, nosso serviço sempre foi afetivo, familiar e, sejamos francos, pouco profissional.

No limite, ouvia-se frases como: “Hoje está uma bagunça a cozinha porque faltou o saladeiro.”, “Não peça tal prato porque hoje a batata veio ruim. Pede, não!”, “O peixe hoje não tá fresco, melhor ir de filé!”.

Por esse motivo, um dos desafios de treinamento dos maitres de então, pela gerência, era explicar que “bom serviço” não se tratava, necessariamente, de fazer todas as vontades da senhora da mesa seis. Seu papel era o de psicólogo, conselheiro, facilitador do conceito da casa, uma espécie de algoritmo vivo que solucionaria a questão entre o perfil de cada cliente e o prato do cardápio que ele viria a amar. Também convinha proteger a reputação da casa e dirigir críticas dos bastidores à gerência, para devidas providências.

Poderia citar uma dezena de maitres que considerei amigos e tantas casas que deixei de frequentar porque fulano não estava mais lá. O problema não estava naquele tipo de maître afetivo, mas em outros que com o pretexto da fidelização, trabalhavam em benefício próprio.

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Como pessoas de influência junto à cozinha, alguns passaram a criar frases como: “Quer trocar o acompanhamento? EU FAÇO PARA VOCÊ”. “Quer mais queijo na massa? EU CONSIGO PARA VOCÊ”. Na leitura das entrelinhas estava uma relação, não exatamente profissional, mas sim de troca de favores. E assim surgiram as saideiras ‘no amor’, o choro no drinque e outros presentinhos nem sempre contabilizados internamente, o que seria o normal e correto, mas recompensados pelo cliente com uma piscada de olho e trocados a mais na gorjeta.

Esse tipo de comportamento equivocado levou a uma reação desproporcional: o surgimento do maître robô, sem autonomia, para evitar os excessos.

Maîtres à moda antiga sempre foram bons vendedores: quantas vezes não “compramos” em impulso distraído aquele acompanhamento, uma rodada de chope, uma sobremesa, uns petiscos, mais um copo de vinho, uma salada verde, oferecidos por ele? E está tudo certo. Restaurantes vivem de vender comida, afinal.

Por vários motivos, a função desandou…

O cozinheiro é, sem sombra de dúvida, uma das peças mais importantes na grande engrenagem dos restaurantes, mas a atenção desproporcional que recebeu graças aos reality shows de cozinha, desde os anos 2000, provocou alguns danos nos demais departamentos, principalmente no salão. Algumas casas, inclusive, passaram a achar a função do “maestro” dispensável, o que é um grande erro.

Vejo maitres robóticos, que repetem o conceito da casa numa pregação que pode levar de 5 a 10 minutos, sem nenhum nível de empatia ou razoabilidade; pessoas incapazes de identificar clientes assíduos e seus gostos, repetindo o conceito para alguém que já o ouviu 10 vezes. Vejo menus recitados feito tabuada, por alguém que parece não ter nenhuma relação de prazer com o prato; autômatos que não podem ser interrompidos pelo cliente porque entram em curto. Vejo a falta de coordenação das equipes e dos  tempos de cada etapa do menu. Garçons que voltam incessantemente à mesa para oferecer algo que o outro já ofereceu, enquanto o maître está distraído pelo salão, vendendo conceito. Vejo alguém que não faz o gesto importante de perguntar se aquele prato tão anunciado e descrito de fato agradou, que deveria ser a preocupação número 1 da casa.

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Faço aqui meu apelo para a volta do maître de verdade, que está no meio: uma pessoa nem tão subserviente ao cliente, nem tão vendedor de verdades da cozinha.

Há salvação. Entre elas, tenho que ressaltar o trabalho indefectível de Malena Cardiel em todos os anos que esteve à frente da equipe de salão do Lasai. Serviço lindo de ver, profissional, ímpar. Também adoro falar do trabalho perfeito de Jade, do Elena, uma coordenação moderna, com conhecimento de produto, ótima liderança de equipes e muita ESCUTA de clientes. Impossível não falar do treinamento impecável de Danni Camilo, rainha de tantos salões cariocas, que entende do riscado porque sempre enxergou o todo graças à sua vasta experiência como restauratrice. Já falei aqui do Robertinho, maître do Adegão em São Cristóvão, a melhor (e mais profissional) versão do maître à moda antiga. Hotéis tendem a ter uma gestão mais profissional de seus salões: é uma verdade absoluta no Fasano, em que o equilíbrio entre simpatia, respeito, conhecimento de produto e profissionalismo está em cada um dos membros da equipe, um fato que também se observa em Matias Iroldi, no Hotel Emiliano.

Tenho esperança no maître moderno e os exemplos que dei me asseguram de que nem tudo está perdido. A busca desse equilíbrio é fundamental para a excelência do serviço na cidade, cada vez mais cobrado, especialmente a partir do holofote gerado por prêmios como o 50Best e a retomada da avaliação pelo guia Michelin.

Essa orquestra não pode perder o compasso.

Viva o MAESTRO!

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