Gastronomia do Imprevisível
Do mel ao café, o que alta gastronomia quer, hoje, é trabalhar com ingredientes impossíveis de padronizar
Fale a verdade, quem não gosta de padrão?
O padrão é o travesseiro fofinho da alma, que diminui o desconforto e faz acreditar que temos algum controle. Criamos pesos, medidas, calendários, estações do ano, horários de ônibus, só para tentar organizar o caos.
Na comida? Redes de fast food vivem de vender padrão, claro. A ideia central é a de que vamos provar um prato em Macapá de sabor idêntico a outro, comido há 6 meses, em Porto Alegre. Acalma muita gente.
Em restaurantes, você é cliente de um prato só? Não se martirize, todos são assim. Ainda que o prato custe a mesma coisa e venha exatamente igual, seu cérebro vai ler a experiência como mais barata, já que não vem com aquela apreensão da primeira vez embutida no ‘preço’.
Pelo mesmo motivo, muitas pessoas detestam “menus-confiança”, feitos de pratos surpresa. Descartados os espíritos mais aventureiros, o inconsciente “lê” o cardápio como “o que será que vem na entrada?”, ”tomara eu goste do principal”, “que medo da sobremesa!”.
Tudo muito natural e psicologicamente justificável, para o desespero dos chefs.
O problema é que há anos discutimos nossa relação já bem desgastada com a indústria que, para atender esse desejo de constância a preços cada vez mais baixos (em tese uma causa nobre), fez surgir os aromatizantes, aditivos, espessantes, corantes e alimentos ultraprocessados.
Estrago feito, é a hora do plot twist, em que puxamos a orelha do inconsciente e questionamos como ele nos fez chegar até aqui.
Chefs, lojistas, baristas e sommeliers, cada vez mais apaixonados pelo campo, pelas estações e seus caprichos, tomaram o caminho contrário: o de apostar no imprevisível, em várias e lindas frentes.
UMA AULA SOBRE MELES
Digo MELES para Eugenio Basile, da MBee Mel, não brigar comigo. A escolha desse plural no lugar de “méis” foi sugestão da mãe de Eugenio, uma professora de português que achava que o termo arcaico era importante para distanciar o produto feito por nossas abelhas nativas daqueles de baixa qualidade que vemos na maioria das prateleiras. Adorei e acatei.
Eugenio e Marcia Basile são o tipo de casal que adoraria levar a tiracolo, tamanha a paixão que têm pelo que fazem. Como forma de educar o consumidor, conduzem regularmente um evento chamado Academia do Mel, uma aula para jornalistas, chefs e formadores de opinião, apresentando méis (ops, meles!) de abelhas nativas vindos de todo o Brasil. Uma delas aconteceu há duas semanas, no Rio de Janeiro.
Enquanto nos habituamos a batizar os méis pela florada (mel de acácia, de eucalipto…), os da MBee levam o nome da abelha nativa, para elevar a cultura desse “ouro líquido” nacional e facilitar o reconhecimento das espécies nativas: mel de jataí, de uruçu, de guaraipo…
Em meio a várias delícias, conhecemos o mel de emerina, de Santa Catarina. Eugenio apresentou dois lotes absolutamente distintos feitos pela mesma abelha, mas vindos de produtores que ficam a 50km de distância um do outro. O primeiro era bem mais denso e doce, e o segundo tinha muito mais acidez, um sabor de uva verde e bem fermentado, como um vinho natural. Não só o clima, mas os microorganismos de cada local interferem no produto. Mesma abelha, mesma região, mas impossível de padronizar.
André Brito, associado da AME-Rio e dono do meliponário BeePoint, em Angra dos Reis afirma que produz meles há 16 anos e nunca houve uma safra igual, até porque nas florestas nativas há árvores que pulam a floração por 5 ou 6 anos. Disse que há anos em que a florada de monjolo cobre o morro de branco e, em outros tantos, que outras flores acontecem.
Na plateia, Lydia Gonzalez, do Angá Ateliê Culinário, em Petrópolis, antiga apaixonada pelos meles da MBee, abraça com prazer o desafio de trabalhar com um produto nada constante. “Já mudei menus inteiros em função de uma leva de meles que esperava ácidos e se apresentaram doces e florais. O prato era de palmito e acabou sendo de endívias, para manter o equilíbrio. O que os outros chamam de dificuldade, para mim é um mundo de possibilidades que me encanta muito mais. É um exercício de conexão com a natureza e de sensibilidade”.
UMA CONVERSA SOBRE CHOCOLATES
Falava com Bruno, sócio da Casa Lasevicius, que arremata microlotes de cacau de produtores de excelência de todo o Brasil, e perguntei se já podíamos falar de “terroir”para o cacau brasileiro, ou seja, se já existe um “perfil Amazônia” ou um “perfil Bahia”, para que o consumidor saiba o que vai encontrar em cada região. Sem querer, EU buscava o conforto de um perfil definido. A resposta não era o que eu esperava:
“O mercado busca o padrão. Eu prefiro acolher o que vem.” – adorei.
Bruno está na fronteira do conhecimento quando o assunto é cacau nacional e acha importante abraçar esse ‘caos’ para não caminharmos no sentido da pasteurização de sabor que já viu acontecer. Comenta que, num concurso internacional do qual participou, teve a oportunidade de provar 50 amêndoas finalistas e percebeu que todas pareciam iguais; isso porque alguns produtores entenderam o tipo de cacau que “ganha prêmios” e começam a selecionar lotes com esse objetivo. “Qual a graça de ter Peru, Equador e Venezuela com o mesmo sabor?”, pergunta.
É claro que se espera alguma consistência de uma variedade de cacau, com base no lugar onde é cultivado, em que solo, clima etc., mas há um milhão de outros fatores que geram resultados totalmente inesperados.
A maior parte do cacau brasileiro é agroflorestal, ou seja, cultivado em meio a outras plantas e árvores. Por isso, falar em “terroir” é uma encrenca.
Uma roça pode estar ao lado da outra, mas se cada uma tem sombra de um determinado tipo ou quantidade de árvores, não dá para garantir que a amostra vá ser regular. O cacau de várzea do Baixo Tocantins, por exemplo, é totalmente diferente do cacau da terra firme; isso sem falar dos microorganismos de cada região, do local onde se faz a fermentação e outros fatores. De cada lote podem sair 10 cacaus diferentes e essa é a beleza de um chocolatier que processa de 4kg, 20kg de amêndoas e não 200kg. Quanto maior o lote, maior o “padrão”, mas adeus nuances.
Como bem disse o chocolatier, melhor acolher o que vem.
UMA PARADA PARA UM CAFÉ
Há pouco tempo, Leo Gonçalves, dono do Café ao Léu, em Copacabana, ofereceu ao público um lote que nunca mais existirá.
Leo também faz parte do clube dos apaixonados por uma causa, a da qualidade, e prefere perder dinheiro a vender um produto que não lhe encante.
Recentemente, foi chamado para participar da abertura de um parque na Serra do Caparaó, (entre o Espírito Santo e Minas) e descobriu um lote de catuaí vermelho de José Alexandre Lacerda, vindo de uma saca de café que havia sido esquecida na lavoura por uma semana. A princípio, não seria vendida, mas quando abriram a saca, o aroma estava espetacular, graças a uma fermentação espontânea que ocorreu naquele “esquecimento”. Arrematou e vendeu tudo. Vai ter novamente? Não…
Entre seus clientes, o Haru Sushi Bar e o Restaurante Flor do Céu ficam apenas felizes de trabalhar com o que vem.
Leo acredita que, quando se trata de qualquer produto agrícola que com certeza será afetado por chuvas, secas, pragas e outros fatores imprevisíveis, mais importante do que comprar o produto apenas quando está espetacular é comprar sempre do produtor que busca a melhor qualidade diante do imprevisível. O objetivo é manter o produtor vivo para, nos anos possíveis, ter o melhor.
Uma lição para todos.
UM PAPO EM TORNO DE PACOVÁS
No ano passado estive em Paraty com Jorge Ferreira, pesquisador e botânico autodidata, num seminário organizado pelo Ministério do Turismo.
Foi lá que Jorge me apresentou ao perfumadíssimo pacová, uma espécie de cardamomo brasileiro que aparece nessa época do ano (ou não…) e virou paixão imediata dos chefs de Paraty.
Ana Bueno, sócia do restaurante Banana da Terra foi a primeira a aderir, mas sabe que deve ter paciência. Além do fruto só dar lá no meio da floresta, em terrenos úmidos e sombreados, é bem difícil de identificar. Em alguns anos, a planta não frutifica, e quando acontece, é preciso ser mais rápido que os roedores, que também têm muito bom gosto. Os chefs choram por um quilo do fruto, mas às vezes só conseguem 300 gramas.
E não só chefs, mas a “nova indústria”, inteligente e adaptável, que sabe lidar com itens sustentáveis, também está começando a gostar da brincadeira. A Yvy destilaria fez um drink chamado Carimbó com gengibre, cambuci e os 800 gramas que conseguiu achar de pacová. Se vai ter de novo? Só Deus sabe…
Jorge também achou outra raridade: um cogumelo roxo doido, raro (o lepista sordida), que surge do nada e tem gosto de…camarão! A venda é feita através de um grupo de whatsapp. Apareceu? Quem chegou primeiro, arremata, como foi o caso do Bernardo Arthuzo, sócio da Pupu’s Pancs com quem faz parceria para oferecer tudo que a Natureza apronta.
Para atender o mercado, Jorge anda treinando os moradores locais, transformando caçadores de animais em coletores de frutos, cogumelos e plantas.
Nada pode ser mais lindo do que isso, não?
Depois de todos esses exemplos, eu pergunto: padrão? Quem liga para o padrão?
Abrace o caos, espere menos e experimente mais.