Sentada no galho mais baixo e firme da jabuticabeira, me despedia daquele momento, em fases. Primeiro crescia em mim o cheiro das folhas, do capim, da terra e a vista da casa através dos galhos, até que o coração se espremia, mais e muito, e vinha o adeus mais difícil: o do suco doce e ácido da fruta em minha boca.
Aquilo era nagori.
Meus assuntos com Luiz Horta podem começar num dia e continuar semanas depois, como se o tempo não existisse. Partem de uma discussão sobre o México, pelo messenger, e terminam num vaso cerâmica, por whatsapp. Sempre falamos de coisas leves e bonitas e, em meio ao nosso naufrágio pandêmico, Luiz achara mais uma boia: um livro encantador de Ryoko Sekiguchi, escritora e tradutora japonesa, lançado na França.
Nagori, literalmente, quer dizer “rastro das ondas” e fala das emoções que vêm das estações, especialmente daquela nostalgia causada pela última fruta ou legume da época, até que os reencontremos no ano seguinte. Sempre morei nessa ideia e nem sabia.
Passei a infância em Petrópolis, colecionando alergias várias, e costumava acordar distribuindo espirros compridos, atchuuuuuuuuuu!, atchuuuuuuuuuu!, atchuuuuuuuu!. Esperava uns instantes e vinha meu pai, com um beijo e a frase: “você espirra exatamente como sua avó”. Não sabia que ser batizada em sua homenagem me faria herdar tanto os espirros quanto a sua obsessão por caquis.
Nunca a conheci.
Aqui no Brasil poucos têm na cabeça o que está na safra. Somos a terra do “em se plantando tudo dá”, e queremos que dê o ano inteiro.
Nada contra as inovações que colocam comida na boca do fazendeiro e livram as plantações das pragas numa população que só cresce, mas aquela tabuleta com o menu do dia inspirado nos ingredientes da feira, costumamos achar civilizadíssima, mas só na Europa. Criamos estufas, borrifamos remédios, cruzamos espécies e irrigamos áreas do tamanho de cidades inteiras, só pra não ter que variar a dieta.
Meus vídeos preferidos durante o isolamento são os da youtuber chinesa Li Ziqi, a única capaz de fazer meu coração arrítmico bater mais devagar. Poderia passar a vida vendo a menina plantar, pentear a horta e carregar para lá e para cá aquelas lindas cestas e potes de barro.
Em passagens que levam até dez minutos (e ninguém tem mais dez minutos na vida) os alimentos brotam e crescem. Em seguida, a menina soca, mói, debulha, fatia e conserva cada folha, fruto, raiz, semente ou bulbo que cruza seu caminho, quase sempre em silencio.
Aqui e ali, ouve-se o vento, os insetos, os pássaros, a voz da avó. Cada árvore em suas mãos parece uma floresta, graças ao aproveitamento total dos ingredientes e a um grande respeito pelo tempo das coisas. Como é lindo o tempo das coisas.
Um dia, ela fez um vídeo sobre caquis. Chorei.
Quando menina, o caqui brotava na geladeira da cozinha, diferente das jabuticabas que colhia no pé, ou dos legumes e folhas que via crescer na horta. Largava brinquedos, boneca e até meu acampamento no jardim, pelas conversas com os frutos vermelhos e suculentos do Outono. Era como se a avó, de mesmo nome, jeito e cismas, os deixasse ali, de presente para mim.
Até hoje, a estação dos caquis chega com o cheiro das manhãs em Petrópolis, com o estalar das juntas do meu pai no corredor e o beijo na testa, que dava tanto na mãe quanto na filha, como num encontro que os três nunca tiveram.
Só me resta torcer pela alergia da infância, e os três espirros compridos capazes de promover encontros fora de época.
Nagori.
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