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Por Cristiana Beltrão, restauratrice e pesquisadora de gastronomia e alimentação
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Quando a criatividade morre antes da sobremesa

Por que investimos tão pouco nessa etapa da refeição?

Por Cristiana Beltrão Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 14 fev 2024, 16h55 - Publicado em 14 fev 2024, 15h55

Dia desses, decidi repassar mentalmente os melhores pratos do ano passado. A verdade é que, na peneira da memória, pratos marcantes têm densidade especial. Se faço esforço para lembrar do impacto, “noves fora” uma ou outra injustiça, a comida não foi tão boa assim.

Para a minha surpresa, houve vários pratos salgados memoráveis brasileiros, mas foi duro ter de escalar o abismo criativo entre a maioria das nossas sobremesas e as do exterior. Lá pelo meio do cardápio, a sensação é que desarmou o disjuntor da inspiração e desandou o resto.

Semana passada, um jovem e talentoso chef carioca afirmou que sua geração não gosta de frutas, mas decidiu “insistir e fazer uma torta de maçãs”. Gostei da comida, mas confesso que, não só achei muito errada a generalização (levante o dedo quem tem menos de 30 e ama frutas), como está na contramão da boa gastronomia mundial, que valoriza, cada vez mais, as sobremesas com essa base. Será que começa aí o equívoco? Em não acreditar no potencial do próprio mercado?

Com raras exceções, o que vejo é uma sequência de doces muito doces, banais na concepção e montagem, mesmo em restaurantes ambiciosos. É chocolate sem qualidade, em calda, em crepe, em torta, em bolo; uma profusão de doces de leite, só morangos, caramelos, merengues, um mar de Nutella (o horror! o horror!) e suas versões. Sorvetes? Só de creme, chocolate ou alguma fruta vermelha em desprezo à nossa imensa biodiversidade. Mesmo que a proposta da casa seja simples, precisamos ver sempre as mesmas coisas? Há ingredientes baratos e mais originais. Fico feliz quando encontro doces clássicos como goiabada, mas por onde andariam o doce de mamão verde, a compota de figos, a mangada ou a marmelada?

E mais: com um Rio cheio de turistas estrangeiros, vale desprezar esse mercado? Ninguém chega em casa e diz que sua melhor lembrança da comida dos trópicos foi a centésima versão de uma torta basca.

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Como é possível que a maior parte das castanhas e nozes que usamos aqui venham da Turquia ou Chile, enquanto esnobamos o baru, o pequi, a macaúba, o coco de babaçu ou até o nosso amendoim? E ainda: onde estão as raízes, especiarias, nossas frutas nativas (e da época). Por onde andam os legumes ou ervas nas sobremesas?

Na alta gastronomia, não é fácil acertar nas duas frentes. Um dos problemas é a certeza de muitos cozinheiros de que seus talentos bastam e que, por isso, não seria necessário investir em um chef confeiteiro que entenda do riscado. Uma pena.

Aqui, uma sequência de boas ideias, que queria compartilhar:

Por que não usar ervilhas crocantes e frescas – “porque estavam tão doces”, como disse a chef Sheyla Alvarado – que vinham sobre um creme etéreo e sorvete de morangos com estragão? Deliciosa sobremesa do restaurante LUNARIO, no Mexico.

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A Ásia sabe que não há limites naquilo que podemos chamar de doce. Comi dumplings de tupinambo com cacau com sorvete de abóbora e esponja de um arbusto aromático, em Singapura. Lá é tupinambo, mas aqui poderia ser baroa, cará, qualquer tubérculo. O arbusto podia ser algo simples como folha de chá ou mate. Pouca gente usa.

Várias sobremesas são perfumadas com sakê, brandy ou qualquer álcool local. Aqui poderíamos ver mais cachaça. Usamos pouco… Também há tantos óleos aromáticos na cozinha salgada! Por que não usá-los na sobremesa? Comi muita coisa com óleos infusionados e azeites. Por que não usamos mais nossos azeites maravilhosos nas sobremesas?? E ainda mais obviamente, por que desperdiçamos os incríveis méis de abelhas nativas?

De longe, as melhores sobremesas do ano foram no CLOUDSTREET, onde o chef do Sri Lanka contratou a melhor confeiteira da Ásia, em 2022: Maira Yeo. O prêmio da moça, descobri agora. A etapa me marcou tanto que gemi primeiro e, só agora, ao escrever este texto, fui pesquisar. Muito merecido, de fato.

Havia uma pannacota de azeitonas pretas com morangos, ruibarbo fresco, um elemento crocante secreto e chocolate branco (de gritar); sorvete de tupinambo com pera pochê e em geleia com telha de natas caramelizadas; e sorbet de ameixas com ameixa fresca e óleo de tomilho, sobre folha de gelatina de crisântemo e soja branca [foto da capa desse texto].

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melão cantaloupe do The Sea, The Sea, em Londres
melão cantaloupe do The Sea, The Sea, em Londres (Cristiana Beltrão/Arquivo pessoal)

Nosso maior pecado, no entanto, é desprezar as frutas. Fruta é uma iguaria, assim como a trufa, o ouriço ou o caviar. A vantagem é que é NOSSA. Temos algumas das melhores do mundo. Basta realçar seu sabor e doçura naturais.

Escolher o ponto de maturação certo, no auge da safra e servir na temperatura correta é tudo que um chef precisa. Nossas frutas são inesquecíveis para a maioria dos estrangeiros, mas a abordagem aqui ainda costuma ser a de colocar no cardápio como uma “opção boa para a dieta” e servir a pobrezinha verde, mal apresentada ou muito gelada.

Em Londres, comi um melão cantaloupe no THE SEA, THE SEA que vinha só com pimenta do reino, um fio de azeite e um pouquinho de creme de leite batido com baunilha à parte. Até hoje penso nele.

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prato de frutas do tri-estrelado Zén, em Singapura
prato de frutas do tri-estrelado Zén, em Singapura (Cristiana Beltrão/Arquivo pessoal)

No ZÉN, que tem 3 estrelas Michelin e o 21º lugar mundial, no último 50Best, a etapa frutas é levada muito a sério (todas do Japão):

Havia a ameixa de Yamanashi, que tem duas vezes o tamanho de um ovo, têm teor de doçura altíssimo e derretem na boca. Foram servidas com xarope e raspas de yuzu. Também havia mangas de Miyazaki , chamadas de o “ovo do sol”. São primas da manga Irwin, da Flórida, e ganharam popularidade desde os anos 80 por serem cultivadas de um jeito muito específico do distrito de Myazaki, no Japão, com temperatura, poda e colheita controladas. São amarradas numa rede no alto da estufa quando pequenas e só apanhadas quando caem do pé. Servidas com um leve xarope de pimenta e, também, um tanto de pimenta moída. E ainda, o melão de Shizuoka, com gosto almiscarado e suculento, servido com gel de cereja seca e a ultra perfumada florzinha de shiso.

A questão é escolher bons fornecedores e valorizar o produto.

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Por fim, não interessa se o restaurante é barato. Criatividade, safra e variedade são as melhores amigas do preço, em restaurantes.

Preciso fazer inúmeras ressalvas, mas mesmo elas seriam injustas e limitadas ao que provei no ano. Precisaria falar das indefectíveis sobremesas de Saiko Izawa, no Rosewood ou da Brenda Freitas, no Maní. Também não falo dos chocolates do Fréderic de Mayer, das várias e ótimas sobremesas à base de frutas da época e abelhas nativas que comi no Lasai ou ainda dos sorvetes deliciosos e originais que comi no Casas Brancas, quando o Gonzalo Vidal ainda estava por lá.

Esse post ranzinza nasceu de uma lembrança carinhosa de um prato da Lydia Gonzalez (que é nova, linda e gosta de frutas), no seu ANGÁ, aqui em Nogueira: eram pepinos, maçã verde, uvas e melão, com sorvete de queijo Boursin de cabra com lírio do brejo e biscoitinho de araruta. Uma rara poesia em tons de verde. Vi agora que anda servindo bolinho de chuva e, ainda, pitanga e melancia com lírio do brejo. Isso me faz querer viajar.

E foi assim que, como resolução de 2024, desejei, pela primeira vez, que a vida não fosse tão doce.

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