Para você, que só fala de presunto pata negra
Os desafios da charcutaria de excelência, no Brasil
Quando a família real chegou ao Rio de Janeiro, a cidade ainda era fechada para o mundo, sem transporte, calçamento ou higiene. Comprava-se a carne-seca ao lado de onde se jogava o lixo, não havia saneamento algum e, nos mercados de rua a céu aberto, pairava um cheirinho de hortaliça vencida e peixe podre no ar.
Mas o Rio, capital do Primeiro Reinado, crescia. E os viajantes, profissionais liberais, e a massa trabalhadora com algum dinheiro, tinha de comer. Além dos doces e salgados vendidos pela rua, a solução para a fome fora do lar era “tomar comida” das casas particulares ou “comer de pensão”, mas o precursor daquilo que chamamos de ‘restaurante’ eram as casas de pasto, locais sem placa nem nada, anunciados pela boca do povo, em almanaques, jornais ou cartazes, com o endereço ou nome do dono.
Em 1809, aparece o primeiro anúncio de casa de pasto da história do Rio de Janeiro: “José Narciso, mestre cozinheiro, faz saber ao respeitável público que, no Catete, junto à venda do Machado, se abriu uma nova casa de pasto, na qual dá mesa redonda a 800 réis cada pessoa. Quem a quiser separada para jantar, tem quarto fechado, havendo na dita casa boas massas, salsichas, e tudo mais com muito asseio”.
Vejam bem: o primeiro registro de restaurante no Rio trazia a palavra SALSICHA.
E de onde ela viria? Provavelmente de um chiqueiro, dez passos adiante.
Não havia porcos no Brasil, antes do tal “Descobrimento”. Foram trazidos da Europa, ainda no século XVI, e tiveram que se adaptar ao clima, solo, legumes e grãos. Com o tempo, foram cruzando e tomando um jeito só nosso e hoje há algumas raças que só existem no Brasil, como é o caso dos porcos moura, nilo, piau, entre outros.
Nas pesquisas históricas do início do século XIX era muito comum ver ruas com uma sequência como essa: havia uma quitanda, uma embaixada, uma chácara, um estábulo de vacas para o leite fresco, uma mansão e, claro, um chiqueiro. Tinha porco para tudo que é lado, fosse no fundo das casas, nos quintais ou até dentro de casa. E até por isso, até o fim do século XVIII, a charcutaria, fosse importada ou nacional, fazia muito sucesso.
A primeira colônia de imigrantes do País foi estabelecida em 1818 por D.João VI, em Nova Friburgo. Além da distribuição de terras aos colonos, de sementes para o plantio, mulas para transporte e bois e vacas para tração e leite, foram dados porcos, para alimentação.
Não havia chiqueiros. Eram criados soltos ao redor da casa e o rebanho comia o mesmo que o dono: milho, batata-doce, abóboras e raízes. Depois do abate, a carne ia para o fumeiro, fundamental para a charcutaria e conservação de alimentos, à época. Claro… não havia geladeira.
Não só as carnes, mas também feijões e outros alimentos eram conservados em banha de porco. Assim, Friburgo se torna um dos principais fornecedores de banha, além de “toucinho de primeira qualidade”, costela e linguiça para a capital, e a suinocultura se manteve com a chegada dos imigrantes alemães, que em 1824 se espalharam pela serra Fluminense.
Pois é. Toda essa tradição e identidade históricas correm o risco de se perder.
Breno Furtado é um dos melhores charcuteiros do Brasil, na minha singela opinião, e está no processo de tentar obter o Selo Arte (um certificado de identidade e qualidade, que possibilita o comércio nacional de produtos elaborados de forma artesanal). Sua empresa, a Porco Alado, é a única charcutaria do país que cura seus embutidos em sistema de cava natural, e justamente em Nova Friburgo.
Para quem não sabe, no processo da cava é preciso inocular uns “fungos do bem”, como os do queijo roquefort, por exemplo, para a preservação dos embutidos.
Há 6 anos, Breno assim fez. Com o passar do tempo, a colônia fúngica se juntou a elementos da região e, hoje, uma nuvem branca recobre todas as peças de charcutaria penduradinhas em sua cava. Esse “bom mofo”, não só protege os embutidos dos patógenos externos, como dá um sabor mais doce e delicado ao produto, com DNA totalmente fluminense. É um produto artesanal único, com lindo marmoreio e cor avermelhada, gordura macia e textura amanteigada, que nada deve a qualquer outro de alta qualidade que eu tenha visto fora do Brasil. Mas o grande diferencial é, claro, a matéria-prima.
Seu guanciale e pancetta são feitos inteiramente com o porco nacional da raça “moura”, que se acha no Paraná ou em Minas, já que todos aqueles porcos de quintal do nosso passado sumiram do Estado do Rio e deram origem a grandes indústrias de porco branco.
Enquanto o porco branco, comum, tipo large white é de muita gordura abdominal e pouca quantidade no lombo, raças nativas como piau e moura têm muita gordura nas costas, de um tipo mais rígido e de melhor qualidade para a charcutaria. Além disso, o percentual é diferente. Enquanto o porco industrial tem em torno de 7,5% de gordura na composição de carcaça, a raça moura tem de 12,5% a 13%, e pode chegar a ter o dobro.
Muito tem se falado sobre a importância e qualidade das raças nativas, mas a verdade é que os produtores andam sofrendo.
Um dos fornecedores da Porco Alado é Ingrid Kliewer Thiessen, que cria porcos no Paraná, há 25 anos. Começou com 40 animais e chegou a ter 700 matrizes em regime confinado, entregando, em média, 1500 leitões por mês para grandes companhias. Há 3 anos, refletindo sobre o propósito do seu trabalho, decidiu investir no resgate do porco moura.
Hoje, ela e sua filha Jessica criam 20 animais em sistema semiconfinado, com todo cuidado que a raça requer. Durante o dia, ficam soltos em piquetes, cercados de verde. Se alimentam principalmente de maçãs, ameixas, peras, abóboras, capim e outros legumes e verduras de sua horta, com alguma ração complementando a necessidade de cada fase. É lindo, parece a cena do século passado, mas é claro, custa muito mais caro.
Os animais chegam a Breno através de Charles Novinski, doutor em Zootecnia, que certifica, rastreia e audita os animais.
Será que vale a pena?
Toda essa poesia dos porcos bem nutridos, vacinados, criados soltos e felizes, como antigamente, não consegue competir com os preços do porco comum, criado em escala industrial. Alguns criadores já começam misturar o rebanho com Duroc e outras raças, para baratear o preço da carne e sobreviver. Vários deles se questionam se essa “causa” vale o imenso esforço.
Adoramos falar de charcutaria estrangeira, de presuntos ibéricos, discursamos sobre a alimentação de bellotas e processos lá de fora e pagamos uma fortuna por isso. O Selo Arte é uma imensa evolução na valorização do produto artesanal, mas antes dele, falta o consumidor reconhecer o valor que tem bem debaixo do seu nariz, no fundo do seu quintal.