
Nosso tempo é uma amálgama de meias histórias, uma espécie de cobertura de bolo das coisas, em que a gente mete o dedo assim na superfície docinha, mas não quer se aprofundar.
Quem diria que estaríamos falando sobre o Ano Novo chinês (celebrado no sábado) em tantos jornais, revistas e blogs? O mundo é um panelão, cada vez mais misturado, em que tangenciamos outras culturas, sem realmente entendê-las.
Acho incrível, claro, saber que sou macaco no horóscopo chinês, apesar de não ter a mais vaga ideia do que isso significa.
Quando o assunto é comida, também boiamos na superfície das coisas, feito nata no leite. Adoramos saber que fios compridos de massa são servidos em aniversários e também na passagem do ano chinês como desejo de vida longa, mas basta pesquisarmos um tantinho mais para vermos que rituais não surgem, assim, do nada.
A verdade é que comida e emoções na cultura chinesa estão intimamente ligadas por uma razão primordial: alimentar aquele mundaréu de gente nunca foi fácil.
Já na Antiguidade, qualquer governante chinês sabia que não havia tarefa mais importante para um Imperador do que alimentar a população. Alimentação e política eram tão conectadas que a habilidade culinária, acreditem, era considerada boa qualificação para uma função ministerial.
Num texto do século IV antes de Cristo, o filósofo Lao Tzi dizia que governar um país era “como cozinhar um peixe pequeno”, ou seja, com muito cuidado e atenção. E, ainda hoje, as metáforas usadas para se elogiar um bom governo são relativas a temperar bem a comida ou dominar as técnicas culinárias (aqui, nossa metáfora histórica talvez fosse “farinha pouca, meu pirão primeiro”, mas passemos…).
As analogias nunca ficaram só na política. Cozinhar, temperar ou cortar perfeitamente, em etapas bem definidas e com métodos precisos, não só aperfeiçoavam o alimento, como eram atos civilizatórios, de pessoas refinadas.
Ao lado da pintura e da poesia, a gastronomia era a arte dos cavalheiros cultos. Povos civilizados eram vistos como cozidos, enquanto os não-civilizados eram definidos como crus.
Ou seja, na China você é a maneira como prepara e serve o que come. Nutrição, sabedoria, gosto e estética são indissociáveis. Tanto que a saudação antiga usada no norte do país, especialmente entre os mais velhos de Pequim, não é algo como “oi!” ou “tudo bem?”, é: “você já comeu?”.
Isso diz tudo.
Lá em casa, a China sempre esteve presente por um sem número de motivos. Minha mãe arqueóloga e antropóloga, já foi ao país inúmeras vezes graças ao seu óbvio interesse por culturas antigas e até poesia sobre o país, já escreveu.
A adoração é tanta que coleciona restaurantes chineses pelo mundo, mesmo aqueles caricatos, de doces muito doces e acres muito acres, com banana caramelada e tal.
Meu momento preferido, no entanto, é quando chega o tal biscoito da sorte que, aliás, não existe na China, mas virou hábito marketeiro nos Estados Unidos. Há quem aceite a sua sorte assim, sem maiores comentários, mas minha mãe quebra o biscoito, abre o papelzinho, dá um grunhido e diz ao garçom: “esta não é minha sorte! Me traga outra, por favor.”.
Eu sou mais minha mãe.
Feliz Ano Novo chinês!