A era dos restaurantes de investidor
Será que é importante o sócio investidor gostar de comer?
Por muito tempo, a gastronomia foi parque de diversões de artistas e entusiastas, cheios de vontade de criar, mas sem nenhuma habilidade para controlar estoques, ficar de olho nos custos ou gerir recursos humanos.
Muitas casas fecharam em pouco tempo por conta de falta de planejamento e excesso de confiança: “tenho certeza de que vai dar, no mínimo, um giro completo numa segunda-feira, né?”. Ou ainda: “o nosso ticket médio vai ser, no mínimo de um prato principal e um copo de vinho, né?”. Vai achando, vai…
Na vida como ela é, pessoas dividem pratos (sinto decepcioná-los); mulheres vivem de dieta e podem passar beliscando uma entrada com torradinhas a noite inteira; nem todo mundo entorna bebida igual a você; um casal pode ficar num copo de destilado por 4 horas; alguns trazem o vinho de casa e vão te constranger a não cobrar rolha etc. etc.
Essa grande introdução foi só para dizer o quanto respeito a nova fase de restaurantes como NEGÓCIO. Investidores profissionais são grandes aliados de vários amigos cozinheiros que finalmente podem cuidar apenas da criação, produto e equipe de cozinha enquanto alguém faz o contraponto, gerindo custos e ajudando a construir marcas longevas que paguem contas e sustentem empregos, não vaidades.
Investidores também ajudam a prestar atenção em outros aspectos da operação, como o atendimento, o ambiente, o som. Com frequência, restaurantes “de chef” pecam na acústica, no serviço, na iluminação ou no marketing. Além do quê, o bolso anda cada vez mais raso. Para ter sucesso nesse setor, hoje em dia, é preciso ter fôlego e escala.
Agora, falemos do outro lado…
Convém se associar a um investidor que, além do retorno, goste minimamente de comida e bebida, né não? Depois, não adianta culpá-lo.
Vários deles têm um grande desprezo pelos seus mercados ou funcionários. Já ouvi muito: “O público dessa geração/bairro/cidade não entende nada! A gente fez uma coisa bem ‘comercial’ por causa disso”; “A mão de obra daqui é muito ruim. Nem adianta treinar!”. Sei…
Qualidade é um traço do dono, seja para baixa ou alta renda. “Comercial” virou o eufemismo preferido de gente que entrega um produto propositadamente medíocre, com ingredientes de quinta e grande impacto na língua (doces muito doces, pimentas, gorduras, ácidos muito ácidos) para dar uma sensação de sabor, sem qualquer complexidade. São casas de nomes marketeiros; equipe bonitinha e descolada; ambientes lindos e cardápios cheios de conceito e discurso, mas sem estofo. Há limites. Produto barato não precisa ser ruim.
Há muita casa “média” e cara, feita para bombar por dois anos e depois mudar de nome e conceito. Não se trata de fidelizar ninguém; só de ganhar dinheiro com a curva da novidade.
Há várias formas de baratear custos com qualidade, mas em geral dão um trabalho que muitos não querem ter: diversificar produtores ou pescadores; formar e pagar bem o pessoal; usar receitas que cruzem ingredientes para melhor controle de estoque; investir em áreas para processamento, de forma a aproveitar talos, cascas, ramas, sobras, cabeças de peixe, aparas de carne e sobretudo, usar produtos da estação. Tem que ter investimento em retaguarda e processo, não só na foto do salão.
Ainda que o cardápio inclua produtos mais básicos, com grande apelo comercial, o que justifica entrar no mercado vendendo bombas de caloria e glicose, super sódicas, de nenhuma complexidade? Esses, não consigo digerir.
Vejo merendeiras de escolas públicas fazendo milagres para alimentar seus alunos com comida barata e boa. Como deitar a cabeça no travesseiro e dormir sorrindo, sabendo que sua casa atende um cliente que você não respeita?
E ainda, nem quis começar a falar de bebidas! Vale mesmo rechear cartas de vinho com rótulos propositadamente inodoros e insípidos, em parceria com importadoras, já que “ninguém entende nada, mesmo…”?
Um investidor pressiona por custos, mas o chef de cozinha, sommelier ou chefe de bar tem que estabelecer limites de qualidade. Depois, não me venham culpar a “pressão do sócio”.
Me desculpem o desabafo, mas quero frequentar casas das quais os chefs e seus sócios se orgulhem, feitas para durar. Casas onde tudo pode dar errado, mas há vontade de acertar.
Posso falar de vários investidores corretos e bem-intencionados, que querem abocanhar mercado com um produto bom e original, mas o que mais vejo é o pacto da mediocridade, em que a única verba que não se economiza é a distribuição de convites para comer de graça em troca de algumas linhas elogiosas.
Um tanto de propósito e a conta, por favor.