Zero esforço cognitivo
Uso amplo e irrestrito do ChatGPT acende a discussão sobre a regulamentação de inteligências artificiais generativas
Eu estava com saudade de ser aluna. Passei os últimos cinco anos acumulando a nobre atividade de lecionar em meio ao dia a dia agitado da agência, e a atividade – além de me trazer muitas alegrias – trouxe também a necessidade recorrente de ter trocas acadêmicas com quem pensa profundamente um determinado assunto. No meu caso, o ofício da criação de conteúdo digital e o grande contexto onde ele se insere. Pois bem. Escolhi um curso interessante e lá fui eu. Ah, detalhe. Queria que esse curso fosse presencial. Depois de três anos de pandemia confesso que não aguentava mais falar para telas com câmeras fechadas e precisava dessa troca ao vivo. Voltei para a faculdade onde eu me formei, a PUC-Rio, um lugar onde eu era muito feliz e sabia. Escolhi uma especialização na Escola de Negócios deles e cá estou eu uns meses depois do curso iniciado. Mas esse não é o ponto da coluna de hoje.
A reflexão deste texto começa a partir de um diálogo que eu presenciei enquanto estava fazendo xixi no banheiro do andar de onde eu me formei jornalista, há 15 anos. E esse não é um prédio que eu frequento, entrei lá por acaso nesse dia, porque eu estava muito apertada e não ia dar tempo de andar até o prédio de educação executiva. “Amiga, eu não tenho ideia, joguei no ChatGPT e entreguei o trabalho. Tudo certo!”, disse a estudante ao telefone em alto e bom som. E foi aí, caro leitor, que eu congelei. O roteirista do universo deu uma caprichada em criar essa cena em um momento onde eu volto para a academia para oxigenar conceitos e, claro, refletir sobre questões atuais do meu mercado tais como o uso da inteligência artificial no processo criativo (e toda a revolução que isso traz).
E é importante já frisar desde o início: não sou contra o ChatGPT e ferramentas de inteligência artificial generativas de um modo geral. Mas acho que como elas estão configuradas hoje – sem regulamentação e sem a obrigatoriedade de demonstração de créditos nos resultados propostos – o uso delas não é aconselhável. Vejam bem. Estamos falando de uma maioria da população que desconhece conceitos básicos da Educação Midiática e que, como trouxe um estudo recente e impressionante da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), tem 67% dos jovens não sabendo diferenciar fatos de opiniões, apenas no contexto do Brasil, por exemplo.
São quase sete em cada dez pessoas no nosso país que não conseguem distinguir se um link que chegou pelo WhatsApp é de uma fonte confiável e remete a algo que realmente aconteceu ou se é apenas um texto opinativo de alguém aleatório. Nesse contexto, nesse mundo, uma empresa de inteligência artificial privada dos EUA disponibiliza livremente uma ferramenta de criação de conteúdo ultra potente, sem regras, para uso recreativo. E aí o jovem que se vê frente às dificuldades normais do ambiente estudantil (quem nunca entregou um trabalho sobre o qual não se sabia muito?) tem agora uma muleta e tanto para se apoiar que exige praticamente zero esforço cognitivo e que faz textos inteiros em um clique. Isso porque comecei essa coluna falando a partir de uma das faculdades mais caras do país que é o berço do privilégio. Estendendo o papo para fora dessa bolha as consequências de pular essas etapas de aprendizagem são intangíveis.
Todo o caminho que a tecnologia traçou até aqui trouxe conquistas impensáveis para a esfera da educação. O que seria do processo de aprendizagem atual sem a EAD ou sem os recursos audiovisuais atrelados aos diversos sistemas de ensino? Mas a utilização de inteligências artificiais generativas de maneira ampla e irrestrita pode trazer consequências gravíssimas para quem ainda está desenvolvendo massa crítica e não percebe que é exatamente o esforço para criar que construirá o seu aprendizado.
Esse papo é longo e profundo. Eu como diretora de agência da área digital me sinto frente a um enorme desafio que é reiterar para a minha rede o quanto o nosso processo é artesanal e usa os recursos jornalísticos de pesquisa para criar. Sem atalhos. Outro dia, durante uma reunião estratégica com meu time, falei sobre essa questão de maneira muito direta e verticalizando, por enquanto, a não-recomendação de I.A´s para o nosso processo criativo. Se elas forem regulamentadas, a gente voltará a pensar. E é interessante observar como a própria OpenAI tem interesse em que esse órgão regulador seja criado. A empresa publicou, recentemente, no seu site, o pedido de regulamentação internacional de inteligências artificiais “superinteligentes” e endossou como esse feito deve estar respaldado pela Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA).
Em um cenário atual em que há vagas para quem cria conteúdo sendo ofertadas em diferentes âmbitos e já são colocadas habilidades com o ChatGPT como um diferencial para a seleção (segundo comunicado recente do LinkedIn esse tipo de especificidade aumentou em 21 vezes dentro da rede social), acho esse tipo de diálogo urgente e inadiável.
Carla Knoplech é jornalista, diretora da agência Forrest, consultora do Instituto Gênesis PUC-Rio e especialista em criação de conteúdo digital