O paradoxo da efemeridade digital
Uma vida útil finita dos conteúdos criados na internet tornaria as trocas mais intensas e proveitosas ou mais irresponsáveis e limitadas?
Quando eu soube que as aulas de conteúdo digital que dou na Pós-Graduação da Estácio passariam a ficar gravadas (dada a situação da educação on-line implementada no meio da pandemia) liguei pra minha coordenadora pedagógica e avisei: “Beleza, mas as aulas vão ficar um pouco diferentes das presenciais, ok”?. Entendo completamente as questões envolvidas nesse nosso “novo normal”: a forma de provar que a aula aconteceu, a lógica para poder dar presença, a possibilidade do material ser consultado pelos alunos após o encerramento da mesma, entre outras questões que são processos desse mundo ainda em adaptação e acometido pela urgência de formatar trabalhos à distância. Entretanto, este fenômeno de gravarmos e salvarmos absolutamente todo o conteúdo criado online, como tudo na vida tem dois lados e essa é a reflexão da coluna de hoje. Entendam, há quatro anos dou essa cadeira na universidade e já passaram pelas minhas turmas centenas de alunos queridos com os quais troquei muita teoria, insights, risadas e análises. E não me oponho de maneira alguma ao fato da aula agora passar a ser gravada. Mas quando a experiência vivida será eternizada e disponibilizada para consultas posteriores, há que se entender que há ali um documento seu, que futuramente pode ser utilizado para fins diversos, ainda que a distribuição do mesmo não seja legalmente permitida. Há, portanto, uma certa perda de espontaneidade e no efeito multiplicador de identificação que ela causa.
As aulas são só um exemplo, podemos trocar o objeto de análise, se preferirem. Pensem então no fenômeno das Lives de conteúdo/entrevistas para refletirmos juntos. Desde que a pandemia se iniciou eu fiz um total de 11 transmissões ao vivo em formato de bate-papo, palestras e aquário. Há vídeos gravados com reflexões minhas desde instituições como a Casa Firjan até perfis de amigos no Instagram que me convidaram para falar sobre o uso das redes sociais. Em todos esses encontros, é claro, versei sobre o meu campo de estudo e trabalho que é a comunicação digital e a produção de conteúdo para redes sociais. Porém, sempre entre um dado e outro há achismos, opiniões e trocas de ideia sobre marcas, campanhas, pessoas e situações que acontecem hoje e sobre as quais a audiência imediatamente clama por uma análise de especialistas. Por saber que tudo sempre pode ficar gravado, opino verdadeiramente sobre o que acho, mas com muita parcimônia e cuidado. E volto a dizer que não vejo problema algum nisso. Há, entretanto, uma preocupação constante do que e como vou falar (coisa que acho, inclusive, que mais gente deveria ter por hábito). Se por um lado perco um pouco da espontaneidade e do humor, por outro, redobro a atenção com dados, achismos e contundência no que é discutido, o que, acredito, a longo prazo trará muito mais ganhos para quem fala e para quem ouve.
Dito isso, provoco a pensata: tudo realmente precisa ficar eternizado? Precisamos ter a nossa disposição absolutamente todos os conteúdos postados digitalmente? Quem vai guardar todo esse material? Esse material pertence a quem vai guarda-lo ou a quem o criou? Quanto custa guardar todo esse material? Esse material pode futuramente ser tirado de contexto e interpretado de maneira injusta? São tantas as implicações que elas não cabem nesta coluna e como você deve ter percebido, tampouco tenho o intuito de cravar o significado desse rastro digital. Porém, pensar sobre a efemeridade de todo o conteúdo digital que vem sendo criado hoje é pensar também sobre armazenamento e responsabilidade com o que é transmitido.
A mesma internet que permite que quem não conseguiu ficar acordado até tarde veja pelo IGTV as aulas-Lives-shows necessárias da cantora Teresa Cristina na madrugada é a que resgata tweets da década passada de alguém e usa-os com os olhos de hoje incitando cancelamentos virtuais. Neste cenário: estaríamos o tempo todo produzindo provas contra nós mesmos ou abastecendo de maneira democrática o acervo virtual de conteúdo da nossa sociedade? Uma vida útil finita dos conteúdos criados na internet tornaria as trocas mais intensas e proveitosas ou mais irresponsáveis e limitadas?
Carla Knoplech é jornalista, fundadora da agência Forrest, de conteúdo e influência digital, consultora e professora