Anestesiados pelo excesso
No afã de consumirmos tudo que nos é oferecido, fomos construindo as nossas vidas baseados em ter coisas e como isso significaria sucesso
Que o homem é um ser social já sabíamos em teoria desde quando a professora nos ensinou na escola. Na prática, descobrimos ao longo das nossas vidas quando momentos felizes ou tristes aconteceram e estes só fizeram sentido se compartilhados. Mas desde que fomos acometidos por uma pandemia mundial a nossa sociedade se viu obrigada a repensar a sua existência com o perigo iminente de contaminação a partir da transmissão pelo toque e uma consequente medida de isolamento social para contê-la. Ainda que esta não seja uma prática adotada amplamente por todos os países contaminados e por todas as camadas das populações dos respectivos locais, estar em quarentena e frear por semanas as nossas vidas nos forçou a enxergar e sentir o que antes estava anestesiado pelo excesso de estímulos que recebíamos.
Ainda que seja imperfeito e nem sempre um filme da Sessão da Tarde, viver é, basicamente, experienciar o coletivo. No afã de consumirmos tudo que nos é oferecido, fomos construindo as nossas vidas baseados em ter coisas e como o conceito de adquiri-las em série significaria sucesso. O tênis da moda, o carro do ano, a bolsa da blogueira. E agora, vejam só, todos os três estão inutilizados nas nossas casas neste momento. Eles não fazem sentido em um mundo onde sair à rua é um risco e ficar em casa – para quem tem esse privilégio – é um gesto de empatia. Você não trocaria esse tênis por mais uma noite no bar preferido cercado dos seus melhores amigos e rindo até o amanhecer? E a bolsa? Vai dizer que ela não vale menos que um almoço de Páscoa em família, com as comidas mais deliciosas preparadas pelos seus entes queridos, os abraços nas crianças e a troca de ideias ao redor de uma mesa? Pois é.
Não que isso seja uma escolha, é claro que é possível ter tudo ao mesmo tempo. Mas essa interrupção forçada do ritmo das nossas vidas nos trouxe o convite à reflexão de que, talvez, quando voltarmos ao “novo normal”, seja possível darmos mais valor aos momentos e menos aos bens materiais. Será que vale mesmo a pena trabalhar até as dez da noite todos os dias e perder o “boa noite” do seu filho durante a semana? Este armário lotado de roupas não poderia ter virado uma viagem com a sua mãe para você eternizar na memória? E essas prateleiras do banheiro lotadas de cremes e maquiagens, já fez a conta de quanto eles poderiam ser revertidos em dinheiro na sua conta para te garantir mais tempo de tranquilidade financeira até que essa tempestade passe? E o quanto a falta dessa tranquilidade financeira pode impactar o seu relacionamento atual?
Se é que é possível tirar algo de bom disso tudo que seja a percepção de que precisamos menos de coisas e mais das pessoas. Não é o acaso que está fazendo você se espremer na janela para buscar sol, honrar o horário do Facetime com a família, ligar para pessoas as quais você não conversava há muito tempo. Precisamos dos outros assim como precisamos da natureza, da arte e da rua. Somos basicamente bichos e vivemos em bando. Que este final de semana atípico de Páscoa e Pessach seja um momento de iluminação no meio do caos e nos escancare tudo que já temos e pelo qual deveríamos ser gratos. É como se o efeito da anestesia finalmente estivesse passando e você acordasse em uma cama de hospital. Pelo que você procura quando finalmente abre os olhos?
Carla Knoplech é jornalista, fundadora da agência Forrest, de conteúdo e influência digital, consultora e professora