Carta aberta a Dina Sfat: mamãezinha, querida
Escrevo agora não porque a saudade tenha aumentado. Mas quero falar sobre o mundo de hoje!
Mamãezinha, querida!
Ah! Como gostava de chamá-la assim! E ríamos da brincadeira. Que sorte a minha ter tido uma mãe como você. “Mãe-galinha” com seus pintinhos embaixo das asas. Mãe que lia toda noite e me ensinou a gostar disso. Toda noite.
Escrevo agora não porque a saudade tenha aumentado. Não, ela já era enorme e continua ocupando seu lugar. Você está nas melhores lembranças, na minha casa, no carinho de estranhos, nas minhas irmãs, no espelho. Hoje tenho exatamente a idade que você tinha ao partir. E isso me deixa inconformada. Muito cedo. Mas quero falar sobre o mundo de hoje! Você viu tanta coisa mudar dos anos 40 até o fim dos 80. Tudo muito rápido, eu sei. E era só o começo.
Nesses trinta anos chegamos aos “Jetsons”! Muita tecnologia, muita informação, muita parafernália digital, novas linguagens, a ideia de um mundo que é uma comunidade única! Tudo on-line, imagens melhoradas, verdades alteradas, pós-verdades. E muitas fake-news, violência urbana, desigualdade social brutal e crônica e a Amazônia cada vez mais ameaçada.
Vivemos uma pandemia mundial, um vírus. Não virtual, real e ainda descontrolado. Só no Brasil dezenas de milhares de mortes. Não bastasse, temos um cenário político assustador e uma promiscuidade criminosa, com direito a narcomilícias associadas a facções pseudoevangélicas.
É aqui que o corretor de texto desiste de me ajudar. Dizem que o Rio não é para amadores. Muitos assuntos, como sempre. Outro dia, vendo no Youtube uma série documental, só pensava em você! Daria tudo para poder ligar ou, pelo menos, trocar uma mensagem pelo “zap”. Saber sua opinião.
“As entrevistas com Putin”, direção de Oliver Stone, o premiado cineasta americano. Foram vários encontros com o presidente russo, sempre cercados por seguranças, trazendo assuntos polêmicos, como a perseguição aos gays, as acusações de participação russa na manipulação das eleições americanas e os vinte anos de perpetuação no poder. Com direito à demonstrações atléticas de um macho alfa de 67 anos, galopando, lutando, jogando hóquey num estádio lotado e, sempre que possível, mostrando seu físico perfeito. Afinal, a propaganda é a alma do negócio. Ele, que é visto no ocidente como um arquivilão da Marvel, na eterna batalha do bem contra o mal. Perfeito para o papel…
A infância, a passagem pela KGB e como a Rússia se reergueu depois do fim da União Soviética, no início dos anos 90. É aí que você entra, Dona Dina. Que bom que foi lembrar da sua dedicação, apesar dos problemas de saúde, em documentar sua viagem à Russia e à Geórgia, no auge da Perestroika (reconstrução) e Glasnost (transparência nas informações).
“Dina Sfat na União Soviética”, de 1989, direção de Daniel Filho. Sua alegria em estar com artistas de um mundo tão fechado e que tinham muito a ver com sua origem familiar. Sua paixão em presenciar a democracia nascendo naquela nação com uma história tão rica e sofrida. Quem poderia imaginar as voltas que o mundo daria? E eu, aqui na minha prosaica rotina quieta em casa, plantando umas coisinhas, fazendo bolo, cuidando do filho, dos bichos e tentando ficar calma.
Lendo “Cabala e a arte de preservação da alegria”, do rabino Nilton Bonder. Lembra dele? Já escreveu mais de vinte livros, faz teatro, cinema e vem iluminando os caminhos não só da nossa comunidade. Leitura perfeita para potencializar as emoções.
As meninas estão bem, papai e os netinhos também. Todos vivendo as perdas, aprendendo coisas, arrumando as gavetas. Voltei a passar babosa no cabelo. Lembrei de você, mãe. E óleo de amêndoas na pele. Lembrei também. Sua ausência se faz mais presente nesta quarentena.
E com ela sigo. Não poderia estar em melhor companhia.
Bel Kutner, carioca, 50 anos, é atriz, diretora de teatro e foi diretora artística da Cidade das Artes, mãe e faz bolos nas horas vagas.