Uma ópera que sempre dá certo: lembranças de um barbeiro no Municipal
Uma visita a nova montagem de O Barbeiro de Sevilha no Municipal, dirigida por Julianna Santos e Felipe Prazeres, abre o túnel da memória - e do futuro!
Se eu disser o ano, nunca mais poderei mentir a idade. Na melhor das hipóteses conseguiria me safar dizendo que era uma récita infantil. O fato é que a década de 1980 terminava e com ela começava meu amor pela ópera. Assistindo ao delicioso O Barbeiro de Sevilha, de Rossini, domingo passado no Municipal, lembrei de tudo isso. A obra prima do compositor maior de Pesaro não foi “minha primeira ópera”; seria lindo para o efeito dramático e nostálgico desta crônica e para falar da importância do Theatro Municipal no universo artístico do Rio de Janeiro. Não foi, mas esteve bem perto — literalmente nas redondezas.
E naquela década distante existia o INACEN (Instituto Nacional de Artes Cênicas) e ele promovia, em agosto, no Teatro Dulcina, um “mês da ópera”. Não era algo como o “carro de Téspis”, que, no final dos anos 1940, trazia companhias italianas para apresentações ao ar livre, no Castelo (se anunciasse chuva, o espetáculo era transferido para o Municipal. Entrava quem chegasse primeiro — motivo pelo qual um amigo ‘da antiga’ contou-me ter comprado um barômetro). No Dulcina assistiam-se óperas com piano, títulos tradicionais com algumas variações originais, encenados de forma simples porém honesta. Num Rio de Janeiro sedento por música lírica, eram um bálsamo; e eram uma benção para quem estava começando a escutar ópera. Foi nesses primeiros passos do vício da “liricomania” que assisti a um Barbeiro de Sevilha. Lembro de pouca coisa além dos agudos estridentes do soprano (ou seria mezzo?), porém jamais esqueci a modernidade do humor de Rossini e seu libretista — impressão que foi confirmada quando consegui colocar minhas mãos numa gravação da obra (saudades da Radio MEC, com seus programas de ópera comentada!)
Depois desse primeiro Barbeiro “off-Broadway” lembro de duas versões de uma mesma montagem com cenários bem originais do Gianni Ratto, já no Municipal; uma espécie de ‘gaiola’, comboiando a prisão da protagonista). Tinham o gigantesco barítono Fernando Teixeira como Figaro (papel que não era um de seus cavalos de batalha) junto com um elenco predominantemente latino americano e que marcava a estréia do grande baixo barítono Licio Bruno, então com 21 anos (um aníncio no jornal avisava desta estréia, se não me falha a memória). Mais tarde, ainda no Municipal, um espetáculo importado da Argentina (acho) deu a maravilhosa oportunidade para minha geração de escutar talvez o maior Figaro que o Brasil já teve, Paulo Fortes. Era um artista genial. Alguns anos depois, o teatro municipal de Niterói fez uma linda versão com toques ‘barrocos’ e ótimo elenco onde brilhava a grande Ruth Staerke numa participação especialíssima como a empregada Berta. Talvez esteja esquecendo de algo ou de alguém; porém isso aqui é crônica e nao estatística. Finalmente, há uma década ou mais, um grupo repleto de artistas italianos (mas que anunciava-se como Companhia “Brasileira”) apresentou uma versão divertida, com desenhos animados que dividam com a música e solistas a atenção do público. Partindo daquele velho chavão de que cantor de ópera é obeso, vestia todos os cantores com enormes corpos de espuma: “parece que Rosina foi engolida por Nemo, aquele peixe do desenho animado!”, comentou um amigo figurinista.
Por sorte, na versão atual, tudo está no seu lugar justo e, com isso, permite-se que a modernidade do humor – e a música! – venha à tona. Gostaria de elogiar muitas coisas, mas daí a crônica viraria… crítica — nem em sonho faria uma dessas! Nunca poderia discutir o trabalho de amigos e colegas com imparcialidade: assim como quando escrevo sobre teatro de prosa, é muito boa a liberdade de falar do que se gosta e quando gosto. (Ps. A função de “Barbara Heliodora do alem túmulo”, deixo para alguns blogueirinhos que supõem-se críticos e destilam sua ignorância e agendas pessoais. A história é mais velha do que as “inúteis precauções” do subtítulo da ópera de Rossini: na incapacidade de fazerem arte, pensam ser parte da indústria como destruidores. Aliás, o próprio Sterbini, autor do libreto, já descrevia bem o que é uma calúnia….)
Não percam o Barbeiro de Sevilha no Theatro Municipal do RJ, em cartaz até 26 de novembro. O Municipal é o espelho do Rio de Janeiro; por isso mesmo é especialmente emocionante escutar, entre outros, a performance impecável dos dois artistas cariocas que defendem os papéis de Rosina e Don Basilio. Depois da pandemia, 2022 foi um ano de tentar apagar incêndios com criatividade e trabalho, revertendo o cenário de terra arrasada deixado pela Covid. E que privilégio é poder assistir um grande clássico ao vivo, com coro e orquestra e num grande palco!
A dupla que criou O Barbeiro de Sevilha ficaria num misto de surpresa e orgulho se testemunhasse como sua obra ainda se comunica, 206 anos após sua estréia. Eis o ponto que talvez mais importe: quando faz rir ao novato que veio pela primeira vez à ópera da mesma forma que a mim, velho lobo do mar, o espetáculo cumpre uma função que vai além do lazer e toca na parte da educação humanística. Nada melhor do que terminar o ano com um sorriso que nos empresta o grande Rossini.
André Heller-Lopes,
Encenador e especialista em óperas, duas vezes Diretor Artístico do Municipal do Rio, é Professor da Escola de Música da UFRJ.