Três séries que flertam com a arte lírica
O diretor investiga as relações entre óperas, balés e três novos programas de televisão
Foi-se o tempo em que tínhamos tempo para o final de ano e suas festas. As histórias de bons velhinhos com sobrepeso, em extravagante roupa vermelha, foram-se. O tal do espírito que detesta o Natal, o Grinch, já tem até defensores que culpam uma infância vítima de bullying, solitária e verde. Até os pratos das festas, antes pesados ao sabor do inverno Europeu, cederam parte do espaço para comidas mais leves ao sabor do dezembro brasileiro, de temperaturas cariocas.
Depois de mais um ano em casa, 2021 chega ao fim como uma viagem de montanha russa; dessas com vários loopings. Há alguma esperança, graças aos resultados das vacinas. Há as incertezas da nova variante. A ômicron traz um inevitável desânimo que não tem nada de espírito natalino. Se este for o ritmo anual de novas variantes, o alfabeto grego não conseguirá cobrir todas as necessidades. Talvez seja prudente começar a estudar o alfabeto egípcio: preparem-se para a variante “mulher andando de lado com gato e folha de junco”.
Seja como for, o momento de respiro permitiu uma retomada das produções artísticas: a arte, como um reflexo da alma, vive. Se a Broadway cancela shows, teatros de ópera limitam quantidade de público e museus fecham até janeiro, os streamings e séries de TV salvam algo da esperança que sempre marca o final do ano. Três séries em alta fizeram pensar nas ligações de suas tramas com o universo da ópera, balé e música de concerto — o Dito Erudito. Só nos resta agradecer ao espírito natalino pela graça alcançada.
A originalíssima Beforeigners, norueguesa e já em segunda temporada, tem como idéia central do roteiro a viagem no tempo. Mais especificamente, gente de diversas épocas do passado refugiada na atualidade. Imigrantes involuntários vão impondo os hábitos de sua cultura à sociedade contemporânea. Em Oslo, boa parte dos migrantes temporais Vikings traz para o presente as divindades nórdicas e as lendas de sua mitologia. É quase um curso de introdução às óperas de Richard Wagner, em especial a Tetralogia, O Anel do Nibelungo. Por outro lado, a idéia de propor um olhar sobre refugiados que são parte da mesma cultura do país onde vivem (e não estrangeiros) é muito inteligente. É a mesma reflexão da obra O Cristo Recrucificado, de N.Kazantzakis, que inspira a ópera The Greek Passion (1957), de B. Martinu. Uma ópera para se conhecer.
Succession terminou sua terceira temporada com uma reviravolta. Ao redor do mundo dos super ricos, descortina-se um show de roteiro e atuações. Entre um jatinho particular e um helicóptero, estão as vísceras das relações de poder e política — nada longe da trama de A Coroação de Poppea (1643), de Monteverdi, ou Macbeth (1847/1865) e Don Carlos (1867), ambas óperas de Verdi. Se o assedio moral não chegou (ainda) às vias de fato como na Tosca (1900), de Puccini, também não trata amor e política da forma românica como no balé Mayerling (1978), de K. MacMillan. Seria interessante traçar um paralelo entre a riqueza dos ambientes onde algumas das cenas mais duras acontece e o o universo de obras emblemáticas do século XIX, como Giselle (1840), de Adam, ou O Lago dos Cisnes (1877), de Tchaikovsky. Além da relação destruidora com o poder, e da fantasmagoria, tragédias acontecem. Prova de que em 400 anos de gênero lírico o tema não foi ainda exaurido. Para competir com Succession, uma ópera moderna, talvez somente a força de algo como Caligula (2006), de Glanert — outra que recomendo.
Como não podia deixar de ser, temos And just like that, tão criticada quanto foi aguardada.. Não sei dizer se é uma continuação da célebre Sex and the City, mas tampouco é totalmente original. Suspeito que grande parte da reação seja fruto de um incômodo com o simples fato de que a história envelheceu — como seus personagens. Pior, como nós mesmos. Para quem acompanhou a vida das quatro personagens entre 1998 e 2004, a nova série é uma desconfortável olhada no espelho (em nosso pior ângulo). É uma coreografia com figurinos lindos mas que não decolou; uma ópera em que música e libreto não se acertaram. Restam uns 07 episódios para And just like that conseguir ser uma dessas obras que, revisadas após a estréia, tornam-se clássicos. Por agora, é aquela fotografia que apagamos.
Sex and the City renovou seu gênero e colocou mulheres balzaquianas, bem-sucedidas e sexualmente livres como protagonistas — e consumidoras livre de culpas. Obviamente, assim como O Sítio do Pica-Amarelo hoje aparece com um aviso lembrando que aquele programa reflete os costumes e visões de uma determinada época, não há como ignorar que, à luz de 2021, a série original deixava a desejar em matéria de inclusão e diversidade. Se vale um paralelo ‘lirico’, são os mesmo problemas que enfrentam hoje óperas como Madame Butterfly (1904), de Puccini, ou La Traviata (1853), de Verdi. Na primeira, há saias (ou quimonos?) justos que vão desde uma a japonaiserie datada até a atualíssima discussão do “yellow face” (caraterizar um artista não asiático como se pertencente a esta etnia). Pior, o desfecho em que a pobre gueixa tem de entregar seu filho aos yankees; ninguém pergunta sua opinião e o máximo que lhe dão como explicação é um conhecido “é para o bem dele.” Em “A Transviada”, a Dama das Camélias tem de abandonar seu grande amor porque seu passado de prostituição não pode ser aceito pela sociedade. Lido sem a emoção da música e com olhos contemporâneos, o diálogo entre o pai do amante e a ‘decaída’ (assim era traduzida a ópera no português do século XIX) é de revoltar o estômago: “os homens são sempre volúveis”, canta, e ela será abandona ao envelhecer.
Quanto mudou a dramaturgia do século XIX para o XXI é campo para muitas teses. Logicamente mudou, porém talvez menos do que seria de se esperar. Suspeito que Sex and the city tenha feito parte dessas mudanças. Curiosamente, sua série original parece mais moderna do que a nova versão; como se a antiga fosse a ópera Innocence (2021), de Saariaho, enquanto que And just like that flertasse com um melodrama do verismo italiano da virada do século XX…com a morte trágica de vários sonhos queridos — mas o luto é apenas uma parte de nós. Se há uma coisa que a chegada do final do ano nos lembra é que estamos oxidados ou oxidando tal qual Carrie, Miranda e Charlotte envelhecem. É um fato. Até a ausência-presente de Samantha faz parte da vida.
André Heller-Lopes,
Encenador e especialista em óperas, duas vezes Diretor Artístico do Municipal do Rio,
é Professor da Escola de Música da UFRJ.