Fantasmas da ópera: um icône volta ao Municipal depois de 20 anos
O diretor André Heller divide as ideias por trás de sua nova montagem da ópera La Traviata
“No credo en las brujas, pero que la hay, las hay!”, escreveu Cervantes. Da mesma forma, podemos não acreditar em fantasmas da ópera mas…que eles existem, existem! Eis que coube a mim, que vos escrevo, encenar a icônica ópera La Traviata, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Ausente do maior palco carioca há duas décadas, é a primeira vez em quase 50 anos que um brasileiro assina a encenação deste título no Rio — meu ilustre antecessor foi Sergio Britto, com que tive a sorte de estudar em conviver na saudosa Casa da Gávea. Assim sendo, já começo este texto pedindo passagem a Sergio (e a Zeffirelli, que encenou o mesmo título no Municipal em 1979!). Diante de tanta responsabilidade, como não temer?
Toda ópera famosa, dita ‘de repertório’, traz consigo uma carga muito forte. La Traviata, de Verdi e Piave, é um desses títulos cuja música tem uma beleza assustadora (“a haunting beauty”, como dizem os ingleses), e cujo libreto revelou-se já em seu tempo uma pequena revolução estética. A trama tratava de uma história real e contemporânea, sendo considerada tão escandalosa que a censura da época não permitiu que a estréia fosse feita com roupas contemporâneas (do século XIX), demandando que a ação da ópera fosse movida para 1700 — contra tudo que Verdi queria e acreditava. No dias que vivemos, em pleno Brasil de 2023, La Traviata mostra-se, através de suas temáticas de intolerância religiosa, preconceito, gênero e misoginia, incomodamente atual…Assim como ano passado, quando o Municipal estreou Don Giovanni — a historia de um abusador —na mesma época que um estuprador homônimo era descoberto, ópera e (triste) realidade parecem confundir-se.
Fantasmas e óperas famosas arrastam correntes: há expectativas sobre a obra e suas tradições (por vezes fossilizadas), há uma enorme responsabilidade pesando sobre a cabeça dos intérpretes contemporâneos de estar à altura das versões X e Y; eventualmente, há até mesmo a demanda de uma leitura cênica por vezes ‘fiel aos desejos do compositor’, por outras ‘moderna’ e até mesmo da mais iconoclasta vanguarda. E bem posso imaginar como os três sopranos que se alternam no papel da protagonista, Ludmila Bauerfeldt, Laura Pisani e Michelle Menezes, sentem o peso da lenda das grande intérpretes do papel, a começar por Maria Callas que o cantou no próprio Municipal do Rio em 1951. Para cenógrafo e figurinista, como achar o tom certo, que traduza a música mas que não seja rotineiro? Para o próprio Theatro Municipal e seus corpos artísticos, como estar à altura de uma reputação tão histórica em tempos de orçamentos artísticos que mereciam ser maiores — inclusive para que mais pessoas possam ter acesso à ópera, e o teatro possa estimular novos públicos? É um grande desafio que, acho, eles vencem com brilho! Resumo da ópera: nunca se agradará a gregos e troianos. Só nos resta propor uma versão que seja fiel aos nossos corações, aos nossos sentimentos e que, num mundo que parece tão dedicado a cultuar o superficial, possamos falar da importância de uma grande obra de arte como é La Traviata.
Em verdade, nada seria mais fácil do que colocar a ópera em 2020 e usar a pandemia da COVID19 para um analogia (de certo mau gosto, talvez); da mesma forma, prestar uma homenagem as grandes versões clássicas, fazendo uma leitura “certinha” seria uma saída tranquila….apesar de cara: o tradicional, o histórico, para ser bem feito (mesmo), custa bastante. No final das contas, mais importante que a doença ou mesmo a morte trágica da personagem, é esta ‘via’ que ela transgride; é a natureza transgressora da personagem que marca toda a ópera. Afinal, o título em Português seria “transviada”, ou a “decaída”, indicando que há um caminho que não foi seguido, uma moral, uma regra da sociedade que esta pessoa desafiou. Regra e caminho falam de sociedade, de códigos morais e mesmo de prisão. Inconscientemente, a heroína vive numa ‘jaula’ que a aprisiona, um espaço onde desempenha o papel que lhe cabe; por vezes cortesã, por outras jovem esposa burguesa. Essa é uma ‘encenação’ que, aliás, afeta a todos os personagens da ópera de uma ou de outra forma. Iluminados pela luz dessa ‘ribalta’, numa decadência apocalíptica da Paris do fim de século retratado por Toulouse-Lautrec, estão todos expostos. São como aquelas bailarinas de Degas, que dançam com suas roupas diáfanas enquanto homens de preto, anônimos, observam e invadem sua semi-nudez. Seu olhar é um assédio.
Vale repetir que o drama de La Traviata foi imaginado a partir de uma história real: uma moça pobre que foi prostituída pelo próprio pai, mas conseguiu tornar-se uma célebre cortesã, refinada e culta, na Paris de 1840s, morrendo de tuberculose ao 23 anos. Alphosine Plessis (nome real de Marie Duplessis) transformou-se em Marguerite Gautier no romance A Dama das Camélias, de Alexandre Dumas Fils, seu amante (filho do autor de Os Tres Mosqueteiros); e sua vida encontrou ecos na vida do próprio Verdi e de sua companheira, a cantora Guiseppina Strepponi, hostilizados pela sociedade conservadora simplesmente por viverem num relacionamento feliz, sem serem casados (e, pior, tendo ela sido cantora lirica — o que era, na época, equivalente a ser uma prostituta). Infelizmente, a atualidade de La Traviata, comprova-se quando lembramos que a história de um homem como Germont, que tenta impor suas crenças religiosos ao próximo, não está hoje distante das discussões do Supremo Tribunal Federal ou do Congresso Nacional. O assédio dos homens de cartola às bailarinas nos quadros de Degas não está longe de uma imagem que lembro assistir na década de 1980, quando rodas de homens formavam-se na praia quando uma mulher decidia fazer topless. O direito da mulher ao seu corpo assim como o direito de duas pessoas casarem-se, independente de seus gêneros, é hoje, em 2023, discutido de forma não muito menos arcaica do que o discurso do Pai Germont à Violetta há exatos 170 anos, quando a ópera estreou, em 1853
Finalmente, vale compartilhar como o início do romance A Dama das Camélias, de Alexandre Dumas Fils, influenciou minha leitura do ato final da ópera. Assim como as grandes escolas de samba fazem ao entrar na Avenida, eu peço passagem para minhas idéias: aliás , convido o público a viajar comigo numa espécie de ‘universo alternativo’ onde proponho uma releitura do que seria o ato final de La Traviata. É uma leitura certamente diferente que além de basear-se no romance de A Dama das Camélias, e que busca justamente causar algo entre certa estranheza e uma maior interação com o público; como se estivessem descobrindo a ópera pela primeira vez. Sem mudar o texto, jogamos com outros sentidos para as palavras e, coerente com um tema que me é caro e já explorei em operas como Rigoletto e Werther, quero questionar por que o ‘transgressor’ (especialmente se for mulher) é punido com a morte na ópera romântica; talvez seja possível dar ao seu final algo de liberação, deixando punidos os outros, que aqui ficaram em meio a uma sociedade retrograda, conservadora e de falso moralismo. Não seria possível embarcar nesta viagem sem a companhia destes belos elencos e, acima de tudo, do Maestro Luiz Fernando Malheiro, parceiro de longa data, apaixonado pela ópera e pelas vozes. La Traviata acontece no Theatro Municipal do Rio de Janeiro nos dias 17/19/23/24/25 e 26 de Novembro, com ainda uma récita extra no dia 22, para a Petrobras, que patrocinou a realização do espetáculo, apostando numa diversidade cultural que pretende oferecer acesso e estimulo de todos os públicos a todos os tipos de música e arte. Assim sendo, “libiamo nei dolci calice”!
André Heller-Lopes,
Encenador e especialista em óperas, duas vezes Diretor Artístico do Municipal do Rio,
é Professor da Escola de Música da UFRJ.