Domitila e Macunaíma afiando a navalha: ópera brasileira pagando promessas
O diretor investiga os estranhos caminhos da música no Brasil, onde autores e gêneros parecem brigar pela primazia da brasilidade
O título enigmático é porque precisamos falar de música brasileira. Melhor: falar da música de concerto brasileira — a tal da música ‘clássica’ ou ‘erudita’. As duas últimas semanas apresentamos a ópera Domitila no Rio e em São Paulo; na sequência Macunaíma, um novo balé, estreou no Municipal carioca. Há poucos meses, um jovem compositor brasileiro ganhou um concurso nacional para produzir sua ópera pelos mais importantes teatros do país e poucos dias atrás, em Viena, um violinista paulista de apenas 17 anos tornou-se internacionalmente conhecido após tirar o primeiro lugar num dos maiores concursos da europa. As orquestras não param de tocar repertório brasileiro, Ouro Preto tem seu primeiro Festival de Ópera no mais antigo teatro da America Latina e a Osesp prepara-se para tocar dia 15 no Carnegie Hall, de Nova Iorque. Eis um breve panorama da MCB — Música de Concerto Brasileira. Isto posto, por que raios um país que produz uma MPB de tanta qualidade — honrando-a diariamente — ignora essa ‘outra’ produção musical?
Talvez uma parte da resposta esteja em entendermos por que motivos haveria uma música mais brasileira do que outra. De Carlos Gomes ao Funk, passando por Tom Jobim, samba-canção ou Villa-Lobos, estamos falando de música tonal (no máximo, microtonal); ou seja, todas são formas de expressão musical que seguem um sistema de percepção e notação musical desenvolvido na Europa há vários séculos. A estrutura pela qual percebemos os sons, bem como sua notação, é a mesma para a MPB ou para a ópera. Se há ritmos que são mais regionais, ‘nacionais’ ou populares, sua ascendência — seja ela europeia ou africana — pode tanto ser vista como ‘estrangeira’ quanto natural do Brasil. Música brasileira ou música à brasileira, que importa? O que realmente interessa, suspeito, são os caminhos da produção musical, as chances que damos a cada tipo de música de tornar-se bem sucedida.
Na esteira das apresentações da ópera “Domitila”, de João Guilherme Ripper, interroguei alguns dos nossos compositores “eruditos”, de várias gerações. Provoquei as impressões deles sobre o que é fazer ópera no Brasil e o painel que as respostas apresentam é bem interessante. Dos mais veteranos aos estreantes, fica claro a dificuldade de se conseguir ter uma experiência na ópera — forma de expressão onde pode-se propor mais facilmente ao ouvinte novas sonoridades e estabelecer uma contemporaneidade com assuntos mais recentes e próximos ao público. Há uma certa alegria das pessoas, e mesmo supresa, em poder entender o texto cantado em português — sem prescindir de legendas, claro, pois deve evitar qualquer empecilho para compreensão do texto cantado (especialmente se pensarmos na formar público jovem). De “Don Casmurro”, de Ronaldo Miranda, estreada em 1992, no mesmo Theatro Municipal de São Paulo que, trinta anos depois, apresentou “Navalha na Carne”, de Leonardo Martinelli, há uma clara melhora nas condições técnicas para realização do espetáculo. No entanto, se os últimos anos mostraram um sensível crescimento das encomendas de óperas (e música sinfônica) de autores brasileiros, ainda é pouco: a recém composta “O Pagador de Promessas“, de Guilherme Bernstein, não conseguiu ser estreada no ano em que completam-se 60 anos da vitória do filme homônimo em Cannes. Pode ser que a pandemia seja a culpada — mas apenas neste caso: “Don Casmurro” permanece escandalosamente inédita no Rio de Janeiro, apesar de seu compositor, carioca, ser o exemplo da excelência musical brasileira; a mais bem sucedida ópera brasileira do últimos 25 anos, “Domitila”, de Ripper, somente 22 anos após sua estreia pode ser escutada nos Municipais do Rio e de Sao Paulo. Com tantas paisagens naturais deslumbrantes, o Rio bem que poderia repetir o recente sucesso da encenação ao ar livre de “Alejadinho”, de Ernani Aguiar (em frente ao Outeiro da Gloria?); a mágica produzida pela música de “Anjo Negro”, de Ripper, no Parque Lage é prova de que qualquer ópera poderia funcionar ao ar livre no Rio. Como bem resumiu Denise Garcia (uma das compositoras no inteligente projeto “Viramundo” , estreado durante a pandemia no Palácio das Artes de Belo Horizonte): uma única experiência de compor-se uma ópera dá “bastante pano para manga”.
Esse “pano” de que fala a compositora deixa transparecer tanto a (ainda) pouca presença de mulheres compondo óperas e tendo-as encenadas, quanto o famoso ‘fogo amigo’. A própria “Domitila”, apesar de seus 22 anos de carreira de sucesso viu-se ‘atacada’ como a “ópera da amante”. O texto, feito das cartas de amor de D. Pedro I (o famoso Demonão…) não podia ser mais propício ao bicentenário da independência, mas despertou tanto interesse quanto ciúmes ‘imperiais’. A antiga rivalidade com a Imperatriz Leopoldina pareceu levantar da sepultura para tentar assombrar o sucesso da Marquesa de Santos — tudo porque existe uma outra ópera, inédita, tendo a Imperatriz como protagonista. Pior ainda, mistura-se a causa de uma ópera à ‘caretice’ de atacar uma por ser amante e louvar a outra por ser esposa. Há 200 anos D. Pedro I já nos ensinava que amor e dever podem conviver relativamente bem. Tal polêmica é uma tolice que não serve à causa da ópera brasileira.
A imperatriz foi mais uma vítima da pandemia, que forçou programações mais prudentes ou populares; seria motivo de celebração para toda indústria da música clássica brasileira ver uma nova obra sobre Leopoldina estreada em 2022. Acontece que todos os teatros líricos do país, equipamentos públicos, equilibram-se em orçamentos reduzidos. Estes não convivem bem com sonhos de grandes orquestras, vários coros e complicada encenação; uma ópera de câmara, que pede poucos artistas, tem muito mais chances de sobrevida. Esse é um ponto que Guilherme Bernstein, autor da divertida “O Caixeiro da Taverna”, ressalta como importante — embora nada impeça de um título existir em duas versões, sendo uma para orquestra completa (“Piedade”, de Ripper, existe em duas versões, assim como “O menino e a liberdade”, de Miranda). Pensando nessa ‘praticidade’, dois compositores da nova geração, Eduardo Frigatti (autor de “O Corvo”) e Piero Schlochauer, fizeram suas “estréias” líricas com duas óperas virtuais produzidas pelo Festival Amazonas de Ópera em 2021. Enquanto o primeiro fala de sua crença na força das óperas de câmara, que podem ser exploradas e montadas com maior frequência nos teatros brasileiros, o segundo acaba de ganhar o Prêmio de Composição do Fórum Brasileiro de Ópera, Dança e Música de Concerto, o que permitiria que seu “O Afiador de facas”, uma ópera de câmara, subisse à cena em diversos dos mais importantes teatros do Brasil. Se a nova leva de compositores enfatiza o dever de compor novas obras pensadas para outros espaços físicos (rua, escola, bares, arenas etc) e espaços virtuais (cinema, realidade expandida, realidade virtual, games), é muito interessante — e animador — perceber a crença, de todas estas gerações no uso de tema e ritmos ‘brasileiros’, em português, insistindo que a música a qual se dedicam não é elitista, sendo a ópera “uma excelente porta de entrada para o universo sonoro da música que fazemos.”
“Macunaíma”, o balé escrito por Ronaldo Miranda especialmente para o Ballet do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, é um exemplo muito feliz de uma música que une energia rítmica e melodia. Há muitos momentos bonitos e sensíveis no espetáculo muito bem iluminado (deixo a crítica para os especialistas em dança!); da palheta de cores a uma cena de transformação particularmente bonita. Mais importante: oferece ao Ballet do Municipal a chance de apresentar um dos seus melhores espetáculos dos últimos anos —talvez justamente porque compreenda que na melhor utilização dos meios de que dispõe está a chave do sucesso para os teatros liricos nacionais.
A montagem de óperas brasileiras ainda está em desequilíbrio com a produção de óperas estrangeiras — aqui como em qualquer lugar do mundo. Ópera, música de concerto e dança. Mas há um interesse renovado, contemporâneo, no gênero. Só me resta agradecer a generosidade dos compositores Denise Garcia, Ronaldo Miranda, João Guilherme Ripper, Guilherme Bernstein, Leonardo Martinelli, Eduardo Frigatti e Piero Schlochauer ao dividir comigo e com os leitores do Dito Erudito suas idéias sobre nossa música brasileira.
André Heller-Lopes,
Encenador e especialista em óperas, duas vezes Diretor Artístico do Municipal do Rio,
é Professor da Escola de Música da UFRJ