Precisamos falar sobre a solidariedade nas artes
No Dito Erudito desta semana, os sinais de esperança no horizonte!

Passada a urgência da saúde, na fase da “nova normalidade”, a arte é o que nos permitirá descartar o medo. Nesse momento tão sem túnel nem luzes, há falas de união e esperança; sinais claros do ‘desafio’ ao que nos apavora.
No Brasil, para além da notável pesquisa científica, há iniciativas como o Festival do Conhecimento da UFRJ ou o belo projeto que é o “Lírica Solidária”. Criado por cantores ligados ao Fórum Brasileiro de Ópera, Dança & Música de Concerto, buscam restaurar a dignidade do artista lírico brasileiro: material, psicológica, burocrática e educacional. Uma equipe de cantores voluntariou seus talentos não-musicais por amor à máxima de que ninguém é pobre demais que não tenha algo a doar, ou rico a ponto de nada necessitar. Na Dança, grupos das mais variadas correntes conversam sobre como voltar a sua prática — e talvez nenhuma outra forma de expressão seja tão atingida quanto os bailarinos. Há poucos dias, ao anunciar (e justificar) a realização de duas dezenas de récitas de “La Traviata”, Joan Matabosh, o diretor artístico do Teatro Real de Madrid nos deu uma imprescindível afirmação de fé na Arte: “O que o teatro real faz é uma declaração (de fé no poder da cultura)”, e completou “hoje, cancelar ou fechar já não é uma opção. Há que ser valente e empreender novos desafios”. A estréia está marcada para 1 de julho e o Teatro Real trabalhará com todas as medidas de prevenção e segurança para vencerem o desafio de voltar ao cenário. A lotação da casa será de 50% do total. Difícil? Talvez. Pensem que é o ‘diferente’ que nos leva ao ‘novo normal’. No Rio de Janeiro, a proposta de protocolo que elaboramos o nosso Theatro Municipal já está sendo generosamente revista pela FioCruz. Tenho esperança e otimismo que, quando o momento for certo, assim estaremos mais prontos para voltar. Dia 14 de julho o TMRJ celebra seus 111 anos de existência.
Arregaçar as mangas pesquisar soluções é o que mais fazemos no Brasil, e quero crer que bem. Não podemos esperar a que as coisas normalizem-se sozinhas e teatros ou museus têm de mostrar iniciativas ajustadas aos seus ofícios; o cinema talvez tenha achado uma saída revisitando os antigos “ drive-in” (um formato que pode servir para shows e que a própria English National Opera está explorando para óperas). A internet, claro, é uma constante caixa de (boas) surpresas. No campo das ‘pequenas jóias’, semana passada fui surpreendido pela emoção. A ‘culpa’ foi de um vídeo gravado por cantores líricos argentinos. Neste, interpretavam um trecho da ópera “Aurora”, que lá é cantada tradicionalmente em diversos colégios e cerimônias cívicas. Obra do compositor ‘porteño’ Héctor Panizza, é uma música que para os ‘hermanos’ corresponde talvez a nossa abertura de “Il Guarany”, de Carlos Gomes, tocada por décadas na abertura da “Hora do Brasil”. A introdução do vídeo dizia: “você também já cantou ópera, sabia?”. Tiro meu chapéu para a inteligência dessa forma de mostrar algo como ópera tão próximo do nosso cotidiano .
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Pragas e pestes não são tema estranho à vida (infelizmente). Na arte, aliás, produziram algumas importantes obras. Basta pensar em “Morte em Veneza”, livro de Thomas Mann que deu origem ao filme de Visconti e a ópera de Britten. Uma obra pouco conhecida é a peça “The Roses of Eyam”, de 1970. Nela, o dramaturgo britânico Don Taylor escreve sobre a Grande Peste que varreu o país nos 1660s, partindo de eventos reais que ocorreram na cidadezinha de Eyam, em Derbyshire — e com isso falar de humanidade, tragédia e responsabilidade. A versão original da peça, gravada pela TV, está disponível no Youtube. O vilarejo ficou conhecida como “the Plague Village” e, no centro da trama está a cena em que vários moradores decidem fugir da cidade, atitude que potencialmente disseminaria o vírus por todo país. O país e a vidas de dezenas de pessoas graças a um discurso em defensa do isolamento: “[…] vocês decidiram partir para salvar suas vidas. Mas é meu dever dizer francamente a vocês que estão errados: se partirem, a peste segue com vocês em cada dobra da sua pele… cada casa que entrarem, tudo que tocarem será infectado. Quantos assassinos temos aqui? Não há diferença: se outros morrerem fora desse vilarejo o sangue estará nas suas mãos. Se saírem, vão espalhar a peste. […] Posso ver o medo no rosto de vocês. Há medo no meu coração também…. O tempo é agora e a resposta está em suas mãos.”
É isso, somos todos responsáveis por atravessar esse momento e pelo que virá a seguir.
“Remember one thing about democracy.
We can have exactly what we want
And at the same time, we always end up
With what we deserve”
Edward Albee
André Heller-Lopes
Encenador e Professor da UFRJ, é Diretor Artistico do Theatro Municipal do RJ.