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Por André Heller-Lopes, diretor de ópera
A volta do Dito Erudito
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Desvendando os mistérios (musicais) de White Lotus

O diretor convida o leitor a mergulhar nas referências musicais da série de sucesso e revela seus significados

Por André Heller-Lopes Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
19 dez 2022, 10h39

É uma série de mistérios…. e crimes. Como na maior parte das óperas, a trama inclui personagens extraordinários ou heróicos, doses de romance e sexo, situações cômicas e um final trágico. “White lotus” é um primor de série e, merecidamente, vem ganhando elogios e fãs desde seu primeiro capítulo. Comentada nos quatro cantos do Rio de Janeiro, à segunda temporada, passada na Sicilia e em meio a palazzi dignos de todo imaginário que temos sobre a Itália, não podia faltar o toque da ópera. E sim, ópera é repleta de sexo, e mais de um autor já disse que é tudo sobre sexo.

Depois de escutar a sua história, decidimos que você é como uma heroína trágica numa ópera de Puccini”, diz um dos personagens à americana depressiva e podre de rica. Tanya, essa personagem over the top, é como uma barbie (ela mesmo compara-se a uma boneca em certo momento) madura, de proporções gigantescas, alta costura digna de sua riqueza e muitos, muitos barbitúricos. Não é por acaso que Tanya, já presente na primeira temporada, é o fio condutor da nova trama. Ela realmente é uma diva lírica — e todas a referências musicais estão relacionada a sua história.

Alerta para spoilers a seguir.

Tudo começa com Puccini, alías, o compositor que em 2024 completará 100 anos de morte está no começo meio e final da série. Como canta o poeta Rodolfo numa das mais famosas óperas do compositor nascido na cidade de Luca, La Bohème, sua música é uma “gaia compagnia” (alegre companhia) para toda trama. Bohème, é verdade, não aparece logo no início do primeiro episódio – escutamos a ária “O mio babbino caro”, repetida também ao final, quando o personagem chave da trama afoga-se no mar. Nesta ária, cuja tradução seria “ó papaizinho querido”, a personagem de Lauretta, uma jovem apaixonada, pede ao pai que deixe casar-se com o rapaz que ama; caso não lhe seja permitido, irá até Pontevecchio (a ópera passa-se em Florença) para jogar-se no rio Arno…e morrer afogada! A titulo de curiosidade — e tergiversação — vale não confundir “babbino”, diminutivo carinhoso para papai, “babbo”, com “baMbino”, que por sua vez quer dizer “criança” (o leitor se surpreenderia com o número de vezes que aparecem sopranos fazendo gesto de embalar uma criança enquanto cantam a ária…).

É Madame Butterlfy que dá o tom de dois episódios-chave que ficam bem no meio da série. Os personagens chegam, inclusive, a ir ao Teatro Massimo de Palermo assistir à ópera de Puccini, desencadeando várias emoções neles — e paralelos para nós. Vários trechos musicais aparecem em momentos significativos, como um presságio operístico anunciando o tom de tragédia. A ópera, que termina com o suicídio sacrificial da protagonista quando Butterfly descobre quanto se iludiu (e a iminente perda do filho), faz coro às vibrações negativas vindas do palazzo para onde um aristocrata falido e muito ‘afetado’ leva Tanya, com direito a uma festa digna de um clássico do cinema italiano — uma veillesse dorée que sugere não haver dinheiro por trás dos gloriosos mas decadentes palazzi. Assim, há várias analogias possíveis entre a trama de Butterfly e as cenas destes capítulos. Na ópera, a Gheisha Cio-cio san, é “casada” (ou vendida em casamento) a marinheiro americano; ela acredita estar vivendo um grande amor, ele apenas irresponsavelmente passando seu tempo até o dia em que “se casará de verdade, com uma esposa americana” (sim, ele canta isso). Está aí o conflito entre o mundo das antigas tradições do Japão e da Itália, com o dos americanos endinheirados. Talvez o perfeito resumo desta situação é a cena em que a americana dá um tchauzinho irreverente para uma sisuda nobre italiana sentada no camarote real do Teatro Massimo. Logo em seguida, enquanto o espetáculo começa e escutamos aos primeiros compassos de M. Butterfly, assistimos cenas no hotel entre um dos americanos e a escort italiana a quem deve dinheiro; na ópera a cena inicial é justamente uma negociação entre o marinheiro e o Cônsul americano e um japonês que lhes apresenta a casa e a esposa que compraram “por 199 anos”. Mais interessante são as inserções da famosa ária “Un bel di vedremo”. No segundo ato, Butterfly narra como seria feliz seu reencontro com o marido americano que partiu já há três anos. É um momento de grande romantismo mas também de profunda tristeza pela forma como Butterfly está iludida. Pois é justamente esta ária que escutamos nas cenas em que Tanya fica a sós com seu escort italiano e, depois, quando sua assistente começa a desconfiar que há um terrível plano em movimento: primeiro a frase de expectativa “quem será?”, depois, a que fala de “para não morrer ao reencontrá-lo pela primeira vez” e terminando com “controla teu medo, eu o aguardo com com segura fé!”

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Para terminar, é preciso dizer que nem só de Puccini vive White Lotus. Quando Tanya resolve sair num perigoso passeio de Vespa com seu marido, é uma ária de O Trovador, de Verdi, que escutamos ao fundo; mais precisamente a frase que diz “a morte parecerá apenas como preceder-te no céu” — um toque de humor negro, imagino. Menos irônico e mais poético, é todo início do último episódio, quando é o célebre ‘lamento de Dido’ que escutamos (um outro trecho aparece antes de um conflito entre um outro casal explodir). Na ópera de Purcell, Dido & Aeneas, a rainha de Cartago morre ao ser abandonada pelo troiano Aeneas. Abandonada como a gueixa, é verdade, mas morrendo com as palavras “lembrem-se de mim, mas esqueçam meu destino.” Curiosamente, esse lamento é incialmente dirigido a personagem da sua melhor amiga, Belinda — nome da funcionária do spa que, na primeira temporada, foi descartada por Tanya ao final.

White Lotus é um dos grandes sucessos de 2022. Porém, para quem gosta de ópera e música de concerto, ela traz uma lição — ou uma lembrança — muito mais forte do que a encomenda: ela conta como, às vezes sem perceber, a música lírica é parte da nossa vida.

André Heller-Lopes
Encenador e especialista em óperas, duas vezes Diretor Artístico do Municipal do Rio, é Professor da Escola de Música da UFRJ.

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