Cultura ou culturas
O diretor indaga por que parece que ainda celebramos e falamos de cultura no singular
A data de 14 de julho guarda nossa “bastilha” local. Não há ‘queda’ ou revolução mas a data costuma ver multidões ao redor do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, invadindo-o de felicidade. É que o aniversário do TMRJ é, há muitos anos, comemorado com um dia de portas abertas em que os artistas e técnicos da casa e convidados oferecem um dia inteiro de atrações gratuitas. Nada mais forte como testemunho de que não existe essa barreira entre popular e (dito) erudito. Basta estimular o acesso a todos os gêneros.
Com a pandemia, as celebrações dos 111 e 112 anos do ‘gigante lírico’ da Cinelândia tiveram de se reinventar. O importante é dizer que, mesmo remando contra a maré, fizeram-se presentes. E remar contra tufões é o que mais fazem os teatros que produzem ópera, balé e música de concerto — e pelo simples fato de que, embora há décadas tentem levar sua forma de expressão artistica a todos e conquistar novos públicos, sempre caem na pecha de elitista. Verdade seja dita, nós, os (dito) eruditos, precisamos ainda espantar algumas teias de aranha. Há sempre os saudosistas de um passado de fraque e casaco de peles ao calor do verão carioca. Tudo bem: imagino que devem existir os que lamentam como o rock’roll mudou, ou como o samba de raiz não é mais o mesmo ou as viúvas do inevitável gelo seco que outrora assolava quase todo teatro de vanguarda. Em defesa da indústria da ópera, dança e música de concerto que tem como que (quase) único espaço os teatros históricos do Brasil, vale lembrar que já em 1983 — há quase 40 anos, notem bem — Clementina de Jesus era homenageada no Municipal do Rio. E não parou por ai. Porém, ainda há que se lutar contra o elitismo para termos nós também a chance de ocuparmos um pedaço da cultura.
Cultura, por que singular?
Vejo frequentemente falarem de cultura como de fosse somente uma (quase) sempre a mais popular, e em uma suposta ‘oposição’ à clássica. Como se só valesse à pena/ interessasse estimular o acesso a um tipo de música ou de teatro. Ou como se por gostar mais de Shakespeare ou Martins Pena fosse mais urgente trazer à luz esses autores do que o teatro de vanguarda — este, ainda mais excluído, como ficaria? Talvez exatamente como o violão ficava quando, no final do século XIX, não era considerado um instrumento sério, digno de frequentar as salas de concerto. Percebem como apenas trocaram de lugar? Enquanto isso, o problema persiste o mesmo: privilegiar um tipo de arte é limitador; não há nada de diversidade em se favorecer um grupo. Ao excluírem a ópera, a dança e a música de concerto dos projetos de acesso à cultura, estão repetindo o mesmo erro do passado, só que ao revés. O que não devia ter sido feito nos séculos anteriores com as artes populares, hoje é feito com a arte conhecida como ‘clássica’ ou ‘erudita’. Erros não devem ser repetidos e cultura não se conjuga no singular.
Nesse sentido, vale uma viagem pela memória. Era uma vez em algum momento do final dos anos 1990 (ou, no máximo, 2000) um jovem carioca que queria fazer ópera conseguiu bater um papo com o então secretário municipal de cultura, Arthur da Távola. Aliás, não era “da cultura” e sim “daS culturaS” como ele mesmo gostava de dizer. Pode parecer uma coisa pequena, de jornalista, esse “S”, mas seu uso significa um plural muito maior que o gramatical. O jovem com pretensões a diretor de ópera (era um sonho ainda mais exótico naqueles tempos) foi surpreendido com sonhos do secretário de transformar a Estação Leopoldina numa grande sala de concertos, nos moldes da então novata Sala São Paulo. Assisti com emoção ao vídeo dos operários que trabalharam na obra daquele novo espaço, escutando o primeiro concerto em sua homenagem — e fiquei sonhando o tanto de vida e reinvenção que aquela obra traria àquela área degradada da cidade. Não aconteceu alí na Praça da Bandeira a Sala Rio de Janeiro. Também não foi no Automóvel Clube que surgiu uma nova sala sinfônica, nem um museu da Bossa Nova; oremos para que com o projeto de reviver o centro do Rio, algo surja além de escombros de um desabamento. Porém, cerca uma década depois, surgiu na Barra a Cidade das Artes, filha da mesma idéia.
Criar relações maiores entre equipamentos e seus arredores e reinventar os espaços de cultura passa por abri-los a todas as culturaS. Impossível não gostar da idéia de que arte é ocupar, porém, por favor, a ocupação não pode ser por apenas um gênero, em um sentido. Cultura não tem CEP. É (ou deveria ser) “tudo para todos”: é a sensibilidade de cada um que escolhe o gênero que mais lhe chama à alma. É assim que eu gostaria de celebrar os próximos aniversários dos Municipal do Rio de Janeiro.
André Heller-Lopes,
Encenador e especialista em óperas, duas vezes Diretor Artístico do Municipal do Rio, é Professor da Escola de Música da UFRJ