Código de Ária
Reflexões sobre os paralelos entre o novo podcast Aria Code do Metropolitan Opera e o filme ARIA
Uma parceria entre a rádio americana WQXR e o teatro Metropolitan Opera de Nova Iorque propôs explorar famosas árias de ópera, conectando-as com a nossa realidade. Apresentada pela cantora country Rhiannon Giddens, traz depoimentos e contextualizações vindas desde médicos infectologistas até artistas como a atriz Judi Dench ou o compositor Rufus Wainwright. Em sua busca por tentar entender o motivo pelo qual essas famosas árias ficaram gravadas no inconsciente coletivo, cada episódio mergulha tanto em aspectos musicais quanto na relação destes trechos com a atualidade. A idéia — maravilhosa e que adoraria de reproduzir no Brasil — não deixa de ter uma interessante ligação com o filme ARIA, cult dos anos 1980. Cada um faz, a sua maneira, um paralelo entre ópera e atualidade.
Foi lá por 1987 que apareceu pelo Rio de Janeiro o filme ARIA. Lembro de tê-lo assistido no Flamengo, numa sessão vespertina no finado cinema Paissandu (um dos tantos queridos cinemas de rua da cidade que desapareceram). Hoje tido como um ‘cult’, na época acho que o filme deve ter parecido algo exótico — no mínimo. Eram dez trechos de óperas variadas e cada um dirigido por um artista diferente, como se fossem videoclipes. Unidade estética ou musical não havia, nem era a proposta; o que unia os episódios era o fato de serem óperas. Ou antes, uma homenagem à opera e o que ela poderia significar naqueles já distantes anos 1980.
O repertório do filme ARIA era formado por alguns trechos de Verdi, dois barrocos franceses, um Wagner e um Leoncavallo, além de dois autores menos conhecidos, ligados ao romantismo tardio da virada do século XIX para o XX, Charpentier e Korngold. A abordagem de cada episódio variava entre trechos mais ‘pop’ e os mais liricos, profundos mesmo. Uma versão bastante ‘descritiva’ de Un Ballo in Maschera parecia conversar com um estilo de sitcom de comédia americana para Rigoletto; uma criativa idéia de um asilo de loucos servia a Rameau, contrastando com um trecho de Lully (assinado por ninguém menos que J. L. Godard), cujo foco parecia apenas uma obsessão pessoal do cineasta em mostrar mulheres nuas. Poéticos eram os videoclips dedicados ao breve “La Vergine degli Angeli” e as famosas árias de tenor das óperas Turandot e I Pagliacci. O suicídio de dois jovens em Las Vegas dava um peso emocionante à Morte de Amor de Isolda, de Wagner.
Porém, foi justamente o episódio dirigido por Derek Jarman que ficou gravado na minha memória. Seu tema era, por coincidência, justamente a nostalgia, o passado. Ao som da ária “Depuis le jour”, da ópera Louise, de Charpentier, víamos uma senhora de longos cabelos que, num vestido de época, abanava-se com seu leque. Parecia agradecer aplausos invisíveis enquanto recebia uma chuva de pétalas de flores. Entre uma imagem e outra dessa que parecia ser uma artista veterana despedindo-se dos palcos, eram mostradas cenas do que, supõe-se, teria sido sua juventude. Minhas deduções podem parecer simplistas (o grande Derek Jarman que me perdoe!) mas as traço pensando no texto da ária em questão. Na ópera, Louise conta como tem sido sua vida depois que fugiu da casa dos pais e foi viver com seu amante, o poeta Julien: “Depois do dia em que me entreguei, meu destino pareceu florescer; penso estar sonhando sob um céu de conto de fadas. A alma ainda inebriada do primeiro dia de amor.” Esta bela ária, embora já tenha sofrido os atentados de mais de um soprano que decide cantá-la às apalpadelas e simulações de êxtase, é um prodígio de sutileza — assim como o pequeno filme a ela dedicado, na soberba voz de Leontyne Price.
Que mistérios, que força têm estas músicas — assim como várias outras do repertório puramente instrumental ou de balé — que, compostas muitas vezes há mais de um século, continuam emocionando? O podcast “Aria Code” dispõe-se a isto, conseguindo muita vezes propor uma ligação entre aquele tempo e o atual. Lembrei da cena icônica de ARIA criada por Jarman ao cruzar com uma senhorinha parecida com a do filme que, sentada num banco de praça, contemplava o nada com um olhar vazio. Para minha imaginação operística, não bastou pensar que ela estaria se aproveitando do alivio solar de ter tomado sua vacina. Imaginei mais: ela seria uma polonesa que, tendo sobrevivido à ultima guerra, agora se via às voltas com a guerra contra o COVID; o candor de seu olhar era para as pessoas que, esquecendo o que foram as guerras passadas, gritam estarem fartas de isolamento. Isoladas com internet, celulares e suas redes sociais, televisão e toda forma de facilidade tecnológica moderna. A velhinha da outra guerra só podia sorrir por baixo da máscara: ela sorri, focando seu olhar no futuro. Deve pensar no filósofo Søren Kierkegaard e dizer: “O que é a juventude? Um sonho. O que é o amor? O conteúdo do sonho.“
André Heller-Lopes,
Encenador e especialista em óperas, duas vezes Diretor Artístico do Municipal do Rio, é Professor da Escola de Música da UFRJ.