Racismo e abuso como efeito colateral de medicamentos. Isso é possível?
É preciso diferenciar o comportamento que deriva de um transtorno mental dos que alegam mau feitos como resultado do uso de remédios

Tem se tornado um subterfúgio cada vez mais recorrente, em várias cidades no Brasil. Ao terem seus clientes flagrados por testemunhas ou câmeras cometendo racismo ou abuso, sexual ou moral, advogados de defesa se arvoram a explicar que seus clientes, na verdade, estavam fora de si e agiram “sob efeito de medicamentos” na tentativa de amainar as consequências penais a seus assistidos. Mas afinal, será que remédios tem o poder de despertar comportamentos violentos em quem os consome?
Antes de mais nada, é preciso diferenciar o comportamento que deriva de um transtorno mental dos que alegam mau feitos como resultado do uso de remédios, sejam para insônia ou depressão, como acontece com frequência.
Em casos de pacientes com transtornos mentais diagnosticados, que estejam em período de crise, comportamentos agressivos ou de fúria podem ser justificados e levados em consideração como atenuantes de culpa. Porém, é importante ressaltar que isso nada tem a ver com medicamentos, mas com o transtorno em si.
Quanto ao uso de remédios, embora haja relatos ocasionais de determinadas medicações psiquiátricas causarem, esporadicamente, reação violenta contra terceiros, as evidências em relação a este efeito colateral são escassas.
Ainda assim, é preciso se considerar a correlação do transtorno mental que está sob tratamento com o efeito colateral. Alguém que esteja tomando medicamento para depressão, por exemplo, não tende a ter um ataque de fúria racista por causa de remédio. De todo modo, é fundamental lembrar que estar sob efeito de remédios isoladamente não diminui a imputabilidade, mantendo a pessoa responsável por seus atos, criminosos ou não.
Por outro lado, algumas medicações podem desencadear a desestabilização de transtornos mentais, como o uso de antidepressivos em bipolares, provocando o efeito conhecido como “virada maníaca” (que alguns leigos chamam de euforia), levando a episódios de explosividade.
É preciso se considerar o contexto de cada caso e a eventual reincidência de comportamento de constrangimento ou crime. Pacientes com transtornos mentais já sofrem um enorme preconceito por sua condição, creditar maus feitos ao uso de medicamentos para tratá-los é um enorme desserviço.
Em um país que vive sob as chagas do racismo estrutural e dos abusos, principalmente moral e sexual, valer-se do argumento de que criminosos estejam com seu comportamento “alterado” nada mais é do que eximir-se de responsabilidade escondendo-se covardemente sob o véu de práticas inaceitáveis.
Analice Gigliotti é Mestre em Psiquiatria pela Unifesp; professora da PUC-Rio; chefe do setor de Dependências Químicas e Comportamentais da Santa Casa do Rio de Janeiro e diretora do Espaço Clif de Psiquiatria e Dependência Química.