Quem tem medo dos LGBTQIA+?
Debaixo da sigla, convivem realidades díspares, todas cercadas por algum tipo de preconceito e violência
Uma série inglesa tem causado comoção entre os espectadores pela sua singeleza. “Heartstopper” (Netflix) mostra o processo de apaixonamento de um jovem adolescente inglês por um colega de escola. A série é conduzida com tamanha honestidade e delicadeza, que se chega ao final com um sorriso no rosto. Porém, até conseguir se apropriar do próprio desejo, o protagonista enfrenta um périplo comum aos LGBTQIA+: dúvidas, medos, violências, hostilidades e preconceitos.
Desde cedo, tudo isso tem impacto cruel e definitivo na saúde mental de quem foge à heteronormatividade. De acordo com pesquisa de 2021 realizada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que investigou a prevalência de transtornos mentais entre jovens LGBT de Porto Alegre e São Paulo, chegou-se a conclusão de que jovens que se identificam como lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros tem maior dano à saúde mental, se comparado com jovens heterossexuais. Cerca de 45,5% tem pelo menos um transtorno mental, com maior incidência para depressão e ansiedade – enquanto entre os heterossexuais este número foi de 26,42%. O impacto na saúde mental também implica no aumento de casos de suicídio e transtornos por uso de substâncias.
As dificuldades não se restringem apenas aos jovens. À medida que envelhecem, os LGBTQIA+ encontram outras dificuldades, como o mercado de trabalho. É aí que a diversidade dentro da “sopa de letrinhas” LGBTQIA+ mostra-se ainda mais explícita – e cruel. Debaixo do guarda-chuva da sigla, convivem realidades díspares. De acordo com a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), 90% dos transgêneros vive na prostituição, 6% possui emprego formal e apenas 4% tem emprego formal.
Em maio passado, o IBGE divulgou pela primeira vez números sobre a população LGBT brasileira. Segundo o levantamento, 2,9 milhões de pessoas de 18 anos ou mais se declaram lésbicas, gays ou bissexuais no país, o equivalente a 1,8% da população adulta. A título de comparação, nos Estados Unidos esse número é de 4,5% da população, de acordo com o Instituto Gallup.
Os números oficiais divergem significativamente das estimativas do principal órgão representativo LGBT do Brasil e da América Latina, que reúne mais de 300 entidades de todo o país. Há vários anos, a Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT) projeta número superior a 18 milhões de homossexuais e bissexuais no Brasil – a estimativa atualizada da associação já estima mais de 20 milhões, o equivalente a sete vezes os números oficiais do IBGE.
Aceitar a própria orientação sexual e conviver bem com ela é capaz de reduzir os transtornos mentais e físicos. Foi o que comprovou um novo estudo americano, publicado no Psychosomatic Medicine. De acordo com o resultado, gays e bissexuais que se assumem, apresentam menores índices de cortisol (o hormônio do estresse) e menos sintomas depressivos que aqueles que não saíram do armário. “Assumir a orientação sexual é uma questão de saúde pública”, afirma o pesquisador-chefe do estudo.
Aos poucos, o Brasil vai avançando. Goste-se ou não de reality show, é inegável o poder de penetração do programa nos lares brasileiros. Na última edição do Big Brother Brasil o país assistiu em horário nobre, pela primeira vez, uma travesti dar um show de coerência e empatia. A elegância e a inteligência de Linn da Quebrada desfizeram os preconceitos que rondam esse público e garantiram a ela a permanência no programa por muitas semanas.
Mas não basta. É preciso que as autoridades brasileiras não permaneçam alheias desta realidade. Em ano eleitoral, choca que, até agora, candidatos de todas as esferas eleitorais ainda não estejam discutindo políticas públicas que prevejam a inclusão e a valorização do público LGBTQIA+ – algo entre 3 e 20 milhões de votos, como apontam as pesquisas – na busca por uma sociedade mais respeitosa, igualitária e diversa. Não é favor, é direito.
***
De 28 de junho a 02 de julho, o Boulevard Olímpico do Rio de Janeiro vai sediar o TriboQ Pride Festival 2022, organizado para celebrar o orgulho e discutir políticas para o público LGBTQIAP+. Estarei presente em um painel de debate do “Lugar Q Fala”, no Museu do Amanhã, que irá levantar questões atuais e refletir sobre pontos relevantes que tocam tal grupo como empreendedorismo, educação, direitos e saúde mental. Esperamos vocês lá!
Analice Gigliotti é Mestre em Psiquiatria pela Unifesp; professora da PUC-Rio; chefe do setor de Dependências Químicas e Comportamentais da Santa Casa do Rio de Janeiro e diretora do Espaço Clif de Psiquiatria e Dependência Química.