Por que é um erro grave legalizar os cigarros eletrônicos?
Discussão no Senado sobre a comercialização do cigarro eletrônico é um desserviço à população
Foi preciso recorrer, mais uma vez, ao bom senso e à responsabilidade para deter o que poderia se tornar uma grande tragédia no Brasil (como se nos faltassem tragédias). Na espreita, sem muito alarde ou debate, seria votado, na semana passada, na Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) do Senado, o PL 5.008/2023, projeto de lei que regulamenta a produção e a comercialização de cigarros eletrônicos no Brasil.
A reação da sociedade e dos profissionais de saúde, claro, foi proporcional ao desserviço do projeto e o projeto acabou temporariamente suspenso, mas compromessa de ser reconsiderado novamente já no dia 03 de setembro. A quem antende tamanha urgência em apreciar uma matéria que não traz benefício nenhum à saúde do brasileiro? Ao contrário, a liberação do comércio dos vapes acarretaria apenas prejuízos aos usuários e ao sistema de saúde do país.
Há menos de seis meses, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) – esta sim composta por um corpo técnico capacitado – decidiu manter a proibição da comercialização de cigarros eletrônicos no Brasil, face aos inegáveis malefícios que o utensílio traz para a saúde.
O argumento dos legisladores de que os cigarros eletrônicos já fazem parte do dia a dia da população deveria ser motivo de vergonha e não estímulo. Partem do princípio que se as autoridades não dão conta de coibir seu consumo, melhor seria legaliza-lo. Assassinatos e outros crimes são cometidos todos os dias e nem por isso são legalizados. Seria interessante entender que interesses comerciais estão envolvidos na pressa em aprovar a matéria que justifiquem tamanho descalabro.
O Brasil é referência mundial em campanhas contra o tabagismo. A adesão da nossa população nas últimas décadas é bastante significativa, com queda no número de fumantes e na venda de cigarros tradicionais – e consequentemente, nas doenças relacionadas a eles. Vamos colocar este longo e bem sucedido trabalho em risco por conta de uma nova modalidade de dependência mal disfarçada de modismo?
A maior parte dos pacientes que chegam até mim hoje em dia com o objetivo de parar de fumar não é dependente do cigarro tradicional, mas sim dos cigarros eletrônicos. É curioso destacar que o comportamento deles é completamente distinto, até mesmo diante de um especialista em dependência: não se sentem envergonhados de sacar um vaper para fumar no consultório, acreditando que não causam problemas a fumantes passivos e que o vape faz menos mal que os cigarros comuns. Isso é o maior engano que se pode cometer.
O argumento de que o cigarro eletrônico seria um substitutivo temporário às pessoas que estão tentando parar de fumar também não procede. Ao contrário, há evidência de que seu consumo aumenta em quatro vezes o risco da população que nunca fumou cigarros convencionais virem a se tornar fumantes regulares.
Além de todos os males já conhecidos da nicotina, consumidos em maior quantidade nos cigarros eletrônicos, eles liberam substâncias cancerígenas, aerossóis e metais tóxicos, causando inflamações, doenças respirtatórias potencialmente graves, convulsões e doenças no aparelho cardiovascular. Além disso, os dispositivos eletrônicos para fumar não são seguros em ambientes fechados para a população que não os fuma, uma vez que liberam aerossóis e partículas ultrafinas potencialmente causadoras de doenças cardiovasculares e danos pulmonares.
Por fim, é fundamental deixar claro: há tratamento contra a dependência de nicotina. De modo geral, ele é composto por uma combinação de terapia cognitivo comportamental com medicação – de preferência as duas combinadas concomitantemente. Infeliznete no Brasil, neste momento, não se encontra adesivos de nicotina nas farmácias. Quem deseja abandonar o vício só pode recorrer à goma ou pastilha de nicotina. Outros medicamentos eficientes contra o vício, como a citisiniclina, ainda não tem autorização para serem vendidos por aqui.
É papel do Estado – incluindo o Senado, claro – manter os cidadãos afastados de artigos que possam lhe trazer danos físicos ou mentais – é o que já acontece com outras drogas, por exemplo. Se os congressistas são tão cautelosos em levar adiante qualquer discussão acerca da liberação da maconha, por que com o cigarro eletrônico deveria ser diferente? Não há explicação. Continuaremos alertas para que a discussão agendada para o dia 03 de setembro não prospere.
Analice Gigliotti é Mestre em Psiquiatria pela Unifesp; professora da PUC-Rio; chefe do setor de Dependências Químicas e Comportamentais da Santa Casa do Rio de Janeiro e diretora do Espaço Clif de Psiquiatria e Dependência Química.