“O Urso” come pelas beiradas. A metáfora gastronômica está liberada neste caso, já que a série usa o universo gastronômico e da tensão de uma cozinha profissional para falar de dramas absolutamente humanos. A esperteza de “O Urso” (“The Bear”, no Star+) está no fato de que a dependência não é o tema central do programa. Ela causa impacto porque está “escondida” na existência dos personagens. São, ao mesmo tempo, a causa e a consequência de seus infortúnios.

Após a morte do irmão, dependente de opioides, Carmen (Jeremy Allen White), um chef de cozinha de sucesso, passa a dedicar seus dias (e noites) ao estabelecimento deixado pelo irmão. O clima é de caos: a cozinha é confusa, os funcionários batem cabeça e as dívidas se acumulam. O programa explora, com inteligência, a forma como cada personagem lida com suas vidas, sonhos (e dificuldades) pessoais.

Utilizados para combater dores crônicas e, os opioides também são encontrados diluídos na composição química de medicamentos como os analgésicos (para alívio da dor) e anestésicos (aqueles que reduzem ou eliminam a sensibilidade geral ou local). Porém, os Estados unidos enfrentam há anos uma verdadeira “epidemia” de dependência em opioides. Segundo o órgão americano CDC (Centro de Controle e Prevenção de Doenças), o número de mortes por overdose aumentou significativamente em função do abuso de opioides.

Outro golaço de “O Urso” é lembrar ao espectador que a imagem de um dependente químico “derrotado” é um clichê. Sim, a dependência é capaz de trazer danos profundos à vida profissional, mas ela também é capaz de conviver com pessoas absolutamente capacitadas e bem sucedidas em seus ofícios. É o caso do protagonista. A pressão psicológica sobre ele é tamanha que acaba recorrendo ao álcool. A série é muito feliz e responsável ao mostrar o prejuízo que adicção traz à vida do personagem – que, por influência da irmã, acaba recorrendo ao Alcoólicos Anônimos (AA).

Os júris de todos os prêmios do ano reconheceram os muitos feitos de “O Urso”. No Emmy, a série ganhou nada menos do que seis das principais estatuetas em comédia ou musical: melhor série, melhor ator, melhor ator coadjuvante, melhor atriz coadjuvante, melhor diretor e melhor roteiro. No Critics Choice, a série repetiu o feito e abocanhou quatro dos cinco prêmios para as séries de comédia: melhor série, melhor ator, melhor atriz e melhor ator coadjuvante (enquadrá-la na categoria comédia é bastante questionável, embora a produção consiga arrancar boas risadas às vezes)

A esta altura, você pode estar se perguntando: o que faz com que Carmen – um profissional que poderia trabalhar em qualquer lugar – insista em ficar em um restaurante falido? É preciso assistir para entender.

Analice Gigliotti é Mestre em Psiquiatria pela Unifesp; professora da PUC-Rio; chefe do setor de Dependências Químicas e Comportamentais da Santa Casa do Rio de Janeiro e diretora do Espaço Clif de Psiquiatria e Dependência Química.

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