O que é exatamente ‘consumo moderado’ de bebida alcoólica?
Sem consenso, países debatem se haveria tal medida, apesar de a velha desculpa de que “o álcool faz bem a saúde” já ter caído por terra
“Beba com moderação”. Costumamos a ouvir e ler a frase em anúncios e campanhas de bebida alcoólica na mídia. Porém, nos últimos anos, tem havido um aumento nas mortes relacionadas ao álcool e uma onda constante de notícias sobre os riscos do consumo de bebidas alcoólicas para a saúde. Mas o que exatamente isso significa?
Nos Estados Unidos, por exemplo, o consumo moderado de álcool é definido como um drinque ou menos por dia para mulheres e dois drinques ou menos por dia para homens – medida que costuma ser acompanhada no Brasil. Mas outros países definem o consumo moderado, também chamado de consumo de baixo risco, de forma diferente. Novas pesquisas sobre os malefícios do álcool para a saúde têm criado polêmica acerca dessas diretrizes atuais.
Pesquisas antigas mostraram que pessoas que bebiam com moderação viviam mais do que aquelas que se abstinham ou bebiam excessivamente. Mas agora, muitos pesquisadores acreditam que essas conclusões se basearam em análises de dados que apresentavam diversos problemas metodológicos. Por exemplo: muitas pessoas que se abstinham de álcool o faziam porque já tinham problemas de saúde, enquanto as pessoas que bebiam moderadamente eram mais propensas a ter hábitos de vida saudáveis. Isso criou uma espécie de falsa ilusão de benefícios à saúde com quantidades baixas a moderadas de bebida.
Um novo método para estabelecer o risco do álcool para a saúde analisa apenas as mortes causadas por doenças diretamente relacionadas à substância, como cirrose hepática, intoxicação alcoólica, pancreatite e certos tipos de câncer. Sem dúvida, menos tendencioso e menos confuso.
Tendo como base este método, os especialistas descobriram que o consumo de baixo risco implica quantidade menor de álcool do que o que muitos países recomendam atualmente. No entanto, o nível exato a que o consumo de álcool começa a prejudicar a saúde – e o que é considerado um nível de risco aceitável – ainda está em discussão em diversos lugares.
Alguns países ajustaram as suas recomendações. Austrália e França agora aconselham que ambos os sexos não consumam mais do que 10 doses por semana. As últimas diretrizes do Canadá são mais rigorosas: o consumo de baixo risco é definido como não mais do que duas doses no total por semana, independentemente do gênero.
Para as diretrizes americanas mais recentes, emitidas em 2020, um comitê consultivo recomendou que homens e mulheres não consumissem mais do que uma dose por dia. Essa orientação incorporou as pesquisas mais recentes que afirmam que não há quantidade de álcool que beneficie a saúde.
Portanto, se alguém quiser consumir bebida alcoólica, que o faça consciente dos riscos a curto, médio e longo prazos. O que não é mais aceitável é recorrer à desculpa equivocada de que uma dose moderada de vinho, por exemplo, faria bem à saúde.
Por mais que haja discórdia sobre quanto seria uma dose de baixo risco (e, como a própria expressão já antecipa, não significa risco zero), quando se trata de consumo de álcool, a regra deveria ser quanto menos, melhor.
Fazendo uma comparação entre álcool e tabaco, houve uma época em que metade da população fumava. O que era dado como normal, passou a ser reconsiderado por meio de políticas públicas de conscientização de riscos, restrição de propagandas, e de ambientes com fumo proibido.
Já quanto ao álcool ocorre algo interessante. Se alguém vai a uma festa e não deseja beber, frequentemente há um certo constrangimento diante das insistências: “nem um pouquinho?”, “por que você não está bebendo?”, “bebe só hoje”, são algumas das frases mais recorrentes. O consumo de bebida alcoólica está tão normalizado que meus pacientes alcoolistas frequentemente se sentem intimidados. Alguns, que não querem abrir publicamente sobre a doença, precisam inventar uma mentira qualquer. Uma paciente – que não é alcoólatra, mas não bebe – já pensou em mentir que era dependente do álcool para que desistissem de insistir que ela tomasse “só um drinquinho”.
Acredito que, provavelmente com o tempo, esse constrangimento venha a desaparecer na medida em que a população se conscientizar dos riscos que as bebidas alcoólicas representam para quem as consome.
Analice Gigliotti é Mestre em Psiquiatria pela Unifesp; professora da PUC-Rio; chefe do setor de Dependências Químicas e Comportamentais da Santa Casa do Rio de Janeiro e diretora do Espaço Clif de Psiquiatria e Dependência Química.