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Analice Gigliotti

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Comportamento
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O que a manipulação nas apostas de futebol diz sobre nós como sociedade?

Denúncia chocante sobre compra e venda de lances dá pequenos indícios sobre nosso caráter como povo

Por Analice Gigliotti
15 Maio 2023, 15h43

Quando as empresas de apostas em resultados esportivos se estabeleceram no Brasil, usei este espaço para escrever sobre a minha preocupação com o tema, como psiquiatra especializada em dependências do comportamento. Para quem tem tendência à adição, ter acesso facilitado a sites como estes à distância de um toque no celular é um perigo ao qual as autoridades não estavam se atentando.

Os sites se multiplicaram rapidamente no Brasil e ocuparam um lugar de destaque no futebol nacional: suas marcas estão espalhadas nas placas de patrocínio à beira dos gramados, nos uniformes dos times, no intervalo comercial de quem transmite as partidas. Se tornaram, afinal, parte do mercado. Na gigantesca indústria do futebol – que vive reclamando da falta de dinheiro, apesar das cifras bilionárias que movimenta – ter um novo braço com capital caiu como uma luva, mesmo que esse novo braço se constitua em um jogo de azar.

Contudo, qual não foi a surpresa da mídia e dos torcedores ao tomarem ciência do escandaloso esquema de manipulação de resultados envolvendo apostas esportivas, em que jogadores ganhavam dinheiro para que apostadores fossem favorecidos. Não foram dois ou três jogadores envolvidos, mas vários, basta buscar seus nomes na internet. O caso ganhou repercussão nacional depois que o Ministério Público de Goiás encontrou indícios de que jogadores venderam o resultado do primeiro tempo de uma partida do campeonato goiano no início de 2023. A repercussão fez com que o ministro da Justiça, Flavio Dino, determinasse à Polícia Federal (PF) a instauração de inquérito para investigar os casos de manipulação.

Ainda não se sabe até onde as denúncias podem ir e que atletas podem acabar envolvidos no que parece ser a ponta do novelo de um esquema muito maior e antigo do que se supõe. De todo modo, o Governo Federal propôs, por meio de Medida Provisória (MP) a regulamentação do setor de apostas esportivas – apesar de o jogo de azar ser oficialmente proibido no Brasil desde 1946. A novidade, claro, agradou as empresas do ramo e os clubes de futebol.

Podem me chamar de naif, mas confesso que quando escrevi a coluna sobre as empresas de apostas, nunca me passou pela cabeça que pudessem vir à tona denúncias de fraudes, muito menos em tão pouco tempo. No entanto, assim que ocorreram, achei que elas, infelizmente, faziam todo o sentido. Um povo que duvida da legitimidade de uma urna eleitoral reiteradas vezes dada como confiável, como não suspeitar da idoneidade de apostas que orbitam a falta de regulação?

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Foi o futebol que deu ao Brasil a “Lei de Gerson”, em referência ao famoso jogador que apareceu em uma campanha de cigarros (outro grande responsável por dependências, seria coincidência?), sob o lema que diz muito a respeito de um traço do comportamento do brasileiro: “leve vantagem você também”.

O povo brasileiro é conhecido por levar vantagem, por resolver no jeitinho. Até bem pouco tempo atrás era motivo de orgulho. Tanto que virou slogan publicitário. Com o avanço civilizatório, achávamos que isso era coisa do passado ou que pelo menos alguns setores estariam imunes às derrapadas éticas. Ledo engano. O escândalo das apostas, que agora ficamos sabendo, comprova isto.

No entanto, ele é absolutamente frustrante por mexer com um elemento sagrado para a massa brasileira: a paixão pelo futebol. O amor pela camisa, o respeito aos torcedores, tudo subjugado a um punhado de cédulas de dinheiro. O futebol profissional sobreviverá a mais este baque? O torcedor será capaz de perdoar o jogador que não honrou a camisa que veste em nome da vantagem pessoal? Nos desdobramentos das próximas semanas, vai ser interessante acompanhar até onde alcança a elasticidade da ética e do caráter do brasileiro.

Analice Gigliotti é Mestre em Psiquiatria pela Unifesp; professora da PUC-Rio; chefe do setor de Dependências Químicas e Comportamentais da Santa Casa do Rio de Janeiro e diretora do Espaço Clif de Psiquiatria e Dependência Química.

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