O cassino armado em torno dos clubes de futebol no Brasil
Sites de apostas esportivas sequer tem regulamentação no país, onde os jogos de azar ainda são proibidos

O Brasil é o país de dois pesos e duas medidas. O que vale para uns, não vale para outros. Um país onde todos são iguais perante a lei, mas… se você tiver ensino superior, há uma série de privilégios. Uma nação onde o aborto é proibido em vários casos, mas… quem tem dinheiro e contatos, resolve a questão sem alarde e sem risco de morte. Até nossa festa mais popular, o Carnaval, é o reino da contravenção. Somos, portanto, um país que combina contradição com hipocrisia.
É o que estamos assistindo, mais uma vez, em torno à questão da liberação dos jogos de azar. Enquanto o pesado lobby do setor tenta aprovar no Senado a lei que libera os cassinos no Brasil – já aprovada em março na Câmara – outra poderosa força corre por fora: os times de futebol, essa verdadeira paixão nacional. Dos 40 times que disputam as séries A e B do Campeonato Brasileiro, 35 são patrocinados por sites de apostas esportivas. Trata-se de um mercado ainda sem regulamentação no país, com empresas sediadas no exterior, que não geram divisas ou empregos ao Brasil.
Não é apenas nas camisetas dos times que as marcas estão expostas. São cerca de 400 empresas do ramo que também patrocinam programas esportivos, contratam celebridades e influenciadores digitais para anúncios, um mercado que, segundo apurou a Folha de São Paulo, pode chegar a 100 bilhões de reais e que pode chegar – pasmem! – a mais de 700 bilhões de reais até 2028, de acordo com a Grand View Research.
Autorizadas a operarem em 2018, pelo então presidente Michel Temer, as empresas ainda carecem de regulamentação. Diante da falta de regras, as casas de apostas sequer são obrigadas a destinar parte da receita arrecadada para investimentos no esporte. Na esteira da falta de legislação, outros problemas legais acabam surgindo. Vários apostadores se dizem lesados e sem terem um forum nacional para recorrer.
Um dos braços mais interessados nessa nova modalidade de cassino são os times, claro, que viram seus cofres encherem com o negócio suspeito. Clubes de futebol são ativos milionários, vide Manchester City, Real Madrid ou Barcelona. Mas no Brasil, os cartolas não conseguem (ou não querem?) transformar a paixão em lucro. Os clubes no Brasil, salve algumas raras exceções, estão sempre quebrados, de pires na mão. Até mesmo potências de torcidas, como Flamengo e Corinthias, invariavelmente reclamam de falta de caixa.
Porém, esses sites vão muito além do futebol, dedicando-se a apostas em mais de 20 tipos de modalidades esportivas. Em uma das abas, é possível entrar em uma área intitulada “cassino” com mesas de roletas e blackjacks a um clique de distância do usuário.
Não entendo de esporte. Mas entendo de saúde mental e posso afirmar: jogos de azar têm enorme impacto sobre os apostadores. Segundo dados da USP de 2017, a compulsão por jogos atinge cerca de 1% da população brasileira, totalizando mais de 2 milhões de viciados. Mas não são apenas os dependentes que sofrem. As famílias dos jogadores patológicos também são afetadas, emocionalmente e financeiramente.
O Transtorno do Jogo apresenta sintomas parecidos com os dos transtornos por uso de substâncias (como álcool e drogas), agindo sobre o mesmo sistema de recompensa no cérebro. Jogadores compulsivos podem apresentar desenvolvimento de tolerância e síndrome de abstinência, levando a sofrimento clínico significativo e prejuízo no funcionamento social ou profissional, com possibilidade de aumento de tentativa de suicídio.
Mesmo com tanta informação sobre os impactos que a dependência em jogo pode causar, somos forçados, mais uma vez, a assistir à queda de braço entre a força da pressão econômica versus o bem-estar e a saúde da sociedade. Quem vai levar a melhor nessa disputa? Façam suas apostas.
Analice Gigliotti é Mestre em Psiquiatria pela Unifesp; professora da PUC-Rio; chefe do setor de Dependências Químicas e Comportamentais da Santa Casa do Rio de Janeiro e diretora do Espaço Clif de Psiquiatria e Dependência Química.