Número de mortes por problemas ligados a bebida alcoólica cresce no Brasil
Pandemia, fácil acesso de compra e pouca conscientização sobre os danos explicam o quadro
Se não havia dúvidas que a pandemia de Covid-19, iniciada em março de 2020, deixaria sequelas físicas e mentais por muito tempo, as confirmações começam a se concretizar em estatísticas nestes anos seguintes ao trauma social que vivemos coletivamente.
O crescimento do uso abusivo de álcool e drogas foi apontado por nós, especialistas, desde o surgimento da pandemia. A falta de perspectiva, o turbilhão de sentimentos imposto pelo isolamento social – a ansiedade, luto, angústia, medo, tristeza, solidão -, tudo isso contribuiu significativamente para o consumo de substâncias. Muitos que estavam em processo de abstinência, tiveram recaídas. Outros, que bebiam de forma moderada, passaram a consumir álcool de forma mais frequente e em maior quantidade. E muitos outros, que já bebiam de forma abusiva, entraram em um padrão de dependência.
É o que confirma agora os dados do Ministério da Saúde, levantados pelo jornal Estado de São Paulo a partir do Sistema de Informações de Mortalidade (SIM). As mortes por transtornos mentais associados ao uso abusivo de álcool atingiram a média de 8,5 mil óbitos ao ano, de 2020 a 2022. Isso representa um aumento de 33% em comparação com 2019, portanto antes da pandemia, quando esse número ficou em 6,4 mil.
Ao se considerar a taxa de mortalidade por 100 mil habitantes, também se conclui uma alta representativa nos últimos anos. Fazendo a comparação do número de mortes de 2010 e 2022, o índice passou de 3,71 para 4,18, um aumento de 12,6%. Entre as principais doenças associadas ao uso abusivo de álcool estão a cirrose hepática, a pancreatite e diversos tipos de câncer, como o de faringe, laringe, boca, fígado e esôfago.
Os dados apontam que o aumento do número de mortes em decorrência do consumo abusivo de bebidas alcoólicas é ainda mais percebido entre a população com mais idade: crescimento de 38,7% entre pessoas com mais de 50 anos. Em 2022, este grupo representou 65% das mortes associadas ao uso de bebida alcoólica, um incremento de 11% em comparação com 2010 (49% à época). Também é importante destacar os possíveis danos causados pela combinação da bebida alcoólica com o consumo de medicamentos controlados, como benzodiazepínicos e controladores de apetite.
O levantamento dos dados possibilitou enxergar um outro recorte preocupante: o crescimento do uso abusivo do álcool por pessoas do gênero feminino. Embora 90% dos casos de mortes associadas ao álcool seja de homens, houve um crescimento significativo do consumo entre as mulheres. A independência financeira e social, associada a uma certa glamourização do consumo de bebidas como vinho e à ideia equivocada que o cosumo moderado traria algum tipo de benefício à saúde, fez com que as mulheres passassem a ingerir bebida alcoólica com mais frequência – embora novas pesquisas, cada vez mais, associem o consumo de qualquer mínima dose ao aumento de risco de doenças, como o câncer de mama.
De acordo com o jornal O Estado de São Paulo, foram consideradas somente as mortes registradas como “transtornos mentais e comportamentais devidos ao uso de álcool”, de acordo com a Classificação Internacional de Doenças (CID), abrangendo desde quadros agudos, como intoxicação ou síndrome de abstinência, às mortes causadas por complicações da dependência. Além dos óbitos associados diretamente ao consumo de álcool, a substância aparece como “fator contribuinte” em outras causas de mortalidade, como agressões, acidentes de trânsito, tumores e doenças cardiovasculares. A estimativa é de que 69 mil mortes tenham ocorrido em 2021 por causas parcialmente ou totalmente atribuíveis ao álcool.
O melhor combate aos malefícios causados pela bebida alcóolica está na busca por dificultar o seu consumo – e não facilitá-lo como temos visto recentemente. Consumir álcool não pode ser barato e fácil como é hoje no Brasil. É preciso que a indústria de bebidas pague impostos pesados, é fundamental investir mais enfaticamente nas restrições de venda e nas propagandas de conscientização dos danos causados pela bebida. Só assim teremos a chance de não perder mais vidas para os danos em decorrência das bebidas alcoólicas.
Analice Gigliotti é Mestre em Psiquiatria pela Unifesp; professora da PUC-Rio; chefe do setor de Dependências Químicas e Comportamentais da Santa Casa do Rio de Janeiro e diretora do Espaço Clif de Psiquiatria e Dependência Química.