Inteligência Artificial: ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais?
Revolução tecnológica desafia a morte e o direito à própria imagem

Foi como um rastilho de pólvora. Em questão de minutos, não se falava em outra coisa nas redes sociais (e fora dela): Elis Regina, “reencarnada” pela inteligência artificial, ao volante de uma Kombi dos anos 70, lado a lado com a filha Maria Rita dirigindo em uma Kombi nova, ambas cantando o clássico “Como nossos pais” em um anúncio de uma montadora de carros.
A internet “quebrou” e as opiniões se dividiram. Uma parte embarcou na proposta nostálgica, ficou tocada com a campanha que apelava diretamente à emoção. A outra, se assustou diante da possibilidade de se ressucitar virtualmente uma pessoa que faleceu há mais de 40 anos, ainda mais com fins tão claramente comerciais e não artísticos.
Com o passar dos dias, a reação só fez crescer. O Conselho Nacional de Autorregulação Publicitária (Conar), iniciou um processo ético para investigar a propaganda após receber queixas de consumidores, que questionaram se o uso da inteligência artificial era ético “para trazer pessoa falecida de volta à vida “. Os três filhos da artista se defendem, dizendo que enxergaram na propaganda a oportunidade de ampliar às novas gerações o conhecimento da obra da mãe.
O fato é que as mudanças tecnológicas ocorreram rápido demais. Nos anos 1990, todo mundo se admirou positivamente quando a tecnologia permitiu um dueto entre a cantora Natalie Cole e seu pai, Nat King Cole, falecido em 1965. Apenas trinta anos depois, estamos vivendo a era da deep fake, com a multiplicação e adulteração da imagem e da voz alheias.
Até bem pouco tempo atrás, quando uma pessoa morria, ela legava a seus herdeiros os seus bens (e, no caso de artistas, as obras estão neste contexto). Não mais. Agora, quando morremos, legamos aos descendentes a decisão sobre o direito da nossa imagem. Quando morreu, em 1982, Elis jamais poderia supor que os filhos teriam que decidir, 30 anos depois, se a imagem da cantora poderia ou não ser utilizada em um comercial de veículos.
Na franquia do filme “Velozes e Furiosos”, Paul Walker foi inserido digitalmente em uma das sequências, depois que o ator morreu em um acidente de carro. A atriz Carrie Fisher, morta em 2016, foi recriada digitalmente para aparecer como a jovem Princesa Leia no filme “Rogue One: Uma História Star Wars”. Em uma linda homenagem, a TV Globo inseriu a imagem de Claudio Marzo na nova versão da novela “Pantanal”, embora o ator tenha morrido quase 10 anos atrás. Os casos já são muitos e tendem a aumentar. Todos estes artistas autorizariam a reprodução das suas imagens post mortem?Nunca saberemos.
Estúdios americanos já começam a negociar com artistas o direito de escanear o rosto de atores para usar as imagens para sempre, sem remuneração extra, em cenas futuras de filmes e programas de TV, mesmo depois de mortos. A classe artística se organiza para combater o que considera uma arbitrariedade, chegando a fazer greve nos Estados Unidos. Cientes que se trata de um caminho irreversível, quem tem uma imagem pública a zelar (e faturar) se apressa para registrar formalmente o seu desejo. Madonna proibiu veementemente que os filhos utilizem sua imagem por meio de hologramas, como já foi feito pelos herdeiros da cantora Whitney Houston.
Já o ator Keanu Reeves proíbe deep fakes e edição digital de suas atuações. “Não me refiro à edição, é claro. Não me importo se o editor trabalha em função da minha performance, tirando uma piscada que eu dei no momento errado ou algo assim. Mas, no começo dos anos 2000, ou talvez ainda fosse o fim dos anos 1990, uma atuação minha foi modificada digitalmente. Eles incluíram uma lágrima no meu rosto, e quando assisti ao filme pensei: ‘O que é isso? Eles nem precisam mais de mim”, explicou.
O ator levantou ainda um questionamento: “Culturalmente, socialmente, vamos ser confrontados em breve pelo valor ou não-valor do que é real. E, dependendo do que decidirmos, o que será empurrado para nós?”. Instigante provocação que já é realidade, quando vemos a imagem de políticos sendo manipuladas ou o Papa “usando” um casaco de luxo que nunca foi dele.
Mais rápido que imaginávamos, todos nós, e não apenas famosos, políticos e celebridades teremos que lidar com mais e mais perguntas como a de Reeves. Qual o impacto dos avanços tecnológicos na preservação da memória? Teremos direito a morrer ou a inteligência artificial nos dará uma nova forma de vida pós-morte? E você, cederia a sua imagem a ser usada depois da sua morte?
A seguir, cenas dos próximos capítulos.
Analice Gigliotti é Mestre em Psiquiatria pela Unifesp; professora da PUC-Rio; chefe do setor de Dependências Químicas e Comportamentais da Santa Casa do Rio de Janeiro e diretora do Espaço Clif de Psiquiatria e Dependência Química.