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Analice Gigliotti

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Comportamento

Heleninha Roitman de volta: o que mudou na vida dos dependentes no Brasil?

Personagem-símbolo do uso abusivo de bebida alcoólica volta ao horário nobre da televisão

Por Analice Gigliotti
28 abr 2025, 14h05
Fotomontagem de Renata Sorrah e Paola Oliveira.
Renata Sorrah e Paola Oliveira: quase 40 anos depois, a volta de Heleninha Roitman coloca o alcoolismo no centro do debate mais uma vez. (Divulgação/Reprodução)
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O remake de “Vale Tudo” estreou cercado de expectativas e polêmicas. Desde que a nova versão foi anunciada, as especulações sobre a escalação do elenco, bem como as mudanças na trama, foram amplamente discutidas na imprensa. Sucesso retumbante em 1988, conhecida como “a novela das novelas”, a versão original remonta a um outro Brasil: recém-saído da ditadura, com inflação alta, índices de desenvolvimento – como analfabetismo e fome – vergonhosos.

É inegável que avançamos nos últimos 37 anos em diversos aspectos: houve conquistas nos direitos civis especialmente de mulheres, negros e LGBTQIA+ , nas estatísticas de escolaridade, mortalidade infantil e longevidade da população.

Mas uso esse espaço para abordar um viés comportamental. Uma das personagens mais populares da trama era Heleninha Roitman, vivida magistralmente por Renata Sorrah. Insegura, frágil, errática, eclipsada pela tirania da mãe, Odete Roitman, Heleninha recorria ao uso de bebida alcoólica nos momentos em que viver se tornava tarefa difícil demais para ser suportada. A missão de interpretá-la cabe agora à atriz Paolla Oliveira. No entanto, mais do que uma nova intérprete, o que haverá mudado na vida de um dependente de álcool?

Antes de mais nada, é interessante notar que o consumo abusivo de bebida alcoólica deixou de ser um tabu. Se no final dos anos 1980 o tema ainda era, de certa forma, escamoteado, agora está mais disseminado, seja pela própria cultura (em filmes, livros, séries e outros personagens de novelas), mas também na grande mídia. Abordar o alcoolismo no jornalismo, por exemplo, deixou de ser uma excentricidade extemporânea para se tornar serviço de utilidade e saúde públicas. Também colaborou para isso o fato de artistas e celebridades assumirem seus problemas com a dependência. Nomes como Elton John, Eric Clapton, Amy Winehouse, Denzel Washington, Bem Affleck, Anthony Hopkins, Matthew Perry, Lady Gaga, por exemplo, vieram à público expor suas fragilidades diante da adição pela bebida.

Quando exibida em 1988, “Vale Tudo” botou no ar reuniões dos Alcoólicos Anônimos (AA), o que causou uma procura nunca antes vista pelo tratamento. Agora, recorrer a tratamentos médicos especializados deixou de ser uma excepcionalidade.

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Graças às campanhas governamentais de conscientização, as bebidas alcoólicas perderam a “embalagem” marqueteira que as associava a conceitos positivos como glamour (no caso do uísque) e diversão (como ocorre na cerveja). Restrições publicitárias também tiraram as bebidas alcoólicas da “sala de TV” da família brasileira.

Nos últimos 25 anos, temos mais dados que revelam o tamanho do mercado consumidor de bebida no Brasil – e o impacto que ele exerce sobre a saúde da sociedade. Um exemplo de estatística é a série histórica, desde 2006, que aponta que o consumo de álcool no Brasil se mantém em patamares considerados bastante altos. O percentual de adultos nas capitais brasileiras que ingerem bebida alcoólica em pelo menos um dia da semana se manteve continuamente acima de 25% em quase três décadas, indica a pesquisa Vigitel.

Sabemos hoje que, de acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), o abuso de álcool contribui para mais de três milhões de mortes ao ano no mundo. Além disso, também é considerada um fator relevante de risco para as Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNT), como as doenças cardiovasculares e pelo menos cinco tipos de câncer. No início de fevereiro de 2025, a OMS divulgou um documento apoiando a inclusão de advertências sobre o risco de câncer em rótulos de bebidas alcoólicas.

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Outro dado concreto de mudança de comportamento nas últimas décadas é a relação do gênero feminino com o consumo de bebida alcoólica. Com as conquistas de espaços por parte das mulheres, vê-las beber deixou de ser episódico para se tornar bastante comum: a agência IBGE destaca que 17% das mulheres adultas afirmam ter bebido uma vez ou mais por semana em 2019. De acordo com o estudo, esse índice é 4,1% maior que em 2013. A pandemia de 2020 agravou ainda mais este comportamento (principalmente diante da situação extrema que vivemos, com agravamento de casos de depressão e ansiedade).

Segundo a BBC, o consumo excessivo de bebidas é mais danoso à saúde das mulheres que dos homens: pesquisas mostram que, de 2000 a 2015, houve um aumento de 57% na taxa de mortalidade por cirrose entre mulheres de 45 a 64 anos nos EUA, comparado a um percentual de 21% entre os homens na mesma faixa etária. Já entre as pessoas entre 25 e 44 anos, a alta foi de 18% entre as mulheres, enquanto entre o sexo masculino houve uma queda de 10%. Além da cirrose, é sabido que há uma enorme lista de doenças em decorrência do alcoolismo que atinge as mulheres, de hepatite alcoólica a danos cerebrais.

Uma coisa pouco mudou de 1988 para cá: graças ao lobby poderoso, as bebidas continuam pagando impostos ínfimos aos governos, ainda mais se levarmos em consideração o quanto custam, o lucro que geram e o estrago que podem causar à saúde pública.

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Uma vertente podemos ter certeza que irá mudar entre a Heleninha Roitman de 1988 e a de agora. A autora do remake, Manuela Dias, já afirmou que irá retirar qualquer tom cômico associado ao comportamento abusivo da personagem. Se antes os “porres” de Heleninha rendiam risadas e “memes” que circulam nas redes sociais, agora a Heleninha de 2025 irá mostrar ao grande público o potencial de estrago nefasto que a dependência pode causar na vida social, familiar, amorosa e profissional de quem recorre ao álcool como válvula de escape emocional.

Analice Gigliotti é Mestre em Psiquiatria pela Unifesp (CRM 5249669-2 e RQE 21502); professora da PUC-Rio; chefe do setor de Dependências Químicas e Comportamentais da Santa Casa do Rio de Janeiro e diretora do Espaço Clif de Psiquiatria e Dependência Química.

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