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Analice Gigliotti

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Comportamento
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É possível não ter alguma dependência hoje no Brasil?

Jogos, álcool, cigarro, vapes, rede social, sexo: são muitas as fontes de adicção com acesso fácil no país atualmente

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24 set 2024, 13h41
Bandeira do Brasil rasgada.
A grande oferta e o acesso facilitado a fontes de adicção só fazem crescer no Brasil. (Freepik/Reprodução)
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O senso comum associa a ideia de dependência, ou em linguagem popular “vício”, ao uso de “drogas”, de uma forma generalista e atrelada ao uso de substâncias ilícitas. No entanto, um olhar mais cauteloso e aprofundado identifica outras possíveis fontes geradoras de dependência, como jogos, álcool, fumo, internet e sexo. O assustador é que todos esses itens, se não estão liberados, são de fácil acesso à população. Resultado: o brasileiro tem potencial para adicção (entendendo por adicção todo comportamento compulsivo que traga prejuízo à funcionalidade do indivíduo, bem como à sua vida pessoal, profissional, sexual, familiar, amorosa ou financeira).

Vamos analisar por partes. Mesmo mediante a orientação para venda apenas para maiores de 18 anos, é sabido quão fácil é o acesso à bebida alcoólica no Brasil. Disponível, barata e embalada por um marketing poderoso, o que se assiste é uma escalada de consumo. Segundo o Ministério da Saúde, uma pesquisa mostrou um aumento do consumo abusivo de álcool de 18,4% para 20,8% entre 2021 e 2023. Se o recorte for em comparação com 2010, o crescimento é ainda maior, especialmente entre as mulheres, um salto de 50% (de 10,5% para 15,2%).

Não é possível imaginar o aumento do consumo sem consequências à saúde da população: ainda de acordo com o Ministérios, o atendimento no SUS a pessoas com transtornos mentais por uso de álcool e drogas aumentou. Em 2021, foram 400 mil atendimentos, um aumento de 12% em comparação aos 356 mil casos de 2020.  

Ao uso abusivo de álcool soma-se outros riscos, como a direção no trânsito. Ainda que haja a Lei Seca em boa parte do país, as estatísticas mostram um ligeiro crescimento (de 5,4% para 5,9%) dentre os que afirmam beber e conduzir – um risco para si mesmas e para as demais pessoas no trânsito.

Quanto a dependência em nicotina, o Brasil é referência mundial em campanhas contra o tabagismo, com queda significativa no número de fumantes e na venda de cigarros tradicionais – e consequentemente, nas doenças relacionadas a eles. No entanto, estamos testemunhando o crescimento do perigoso hábito do vape, fonte de grande preocupação, especialmente entre os jovens. Pouco se sabe sobre o que contém neles, mas já se observa sua capacidade de causar danos, com pessoas na casa dos vinte anos apresentando comprometimento das funções pulmonares severas. Se mesmo antes de legalizados já causam tamamnho estrago no mercado paralelo, o que haverá de acontecer se puderem ser comercializados em qualquer esquina?

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Outra vertente em crescimento no país é a adicção por jogos. Se o Brasil já havia espécies de cassinos para os quais as autoridades sempre fizeram vista grossa, do jogo do bicho àos jogos oficiais, com a entrada das bets no mercado, o risco de dependência em jogos de azar tornou-se exponencial (sem entrar no mérito dos escândalos recentes de evasão de divisas e sonegação). O mais triste é constatar onde esse mercado ganha mais terreno: entre as pessoas desesperançadas, que veem no jogo uma possibilidade de ascensão financeira. A plataforma Futuros Possíveis dedicou-se a estudar o setor na pesquisa “Futuro das Apostas Esportivas Online: onde estamos e para onde vamos” e concluiu que a maior parte das pessoas que jogam online são jovens pretos e pardos. Cruzando com as estatísticas oficiais de desemprego no país, este grupo social corresponde a 55% dos mais de cinco milhões de desempregados. Como sempre, o extrato da sociedade mais pobre, que acreditam, equivocadamente, não ter nada a perder.

Quando o assunto é tempo online, poucas nacionalidades se equiparam aos brasileiros. Somos um dos povos que passam mais tempo conectados, independente da idade. De acordo com o “Relatório Digital 2024: 5 bilhões de usuários de redes sociais”, a partir de dados de diferentes empresas provedoras de conexão, os brasileiros são a segunda nacionalidade que passa mais tempo conectada, nada menos do que nove horas e treze minutos por dia. Se considerarmos que uma pessoa tem uma média de sono de oito horas, isso significa ficar online a mais da metade do tempo que se está acordado.

E quando a hiperconexão vem acompanhada de uma outra adição – a pornografia – o estrago na saúde mental pode ser maior ainda: o excesso de horas online combinadas com o fácil acesso a conteúdo pornográfico faz com que esta seja uma dependência cada vez mais comum. Há poucos dias, o influenciador digital Gustavo Tubarão usou sua enorme exposição – apenas no Instagram são mais de 11 milhões de seguidores – para relatar seu vício em pornografia.  Segundo ele, “a pornografia não acaba só com a saúde mental da gente, acaba com o espiritual (…) Dá uma sensação horrorosa”. Antes dele, artistas como Terry Crews, Robert Downey Jr. e Chris Rock e as cantoras Britney Spears e Billie Eilish já haviam falado abertamente sobre o assunto.

E se engana quem pensa que este é um comportamento apenas masculino: levantamento feito pelo PornHub, maior site de conteúdo pornográfico da internet, com mais de quinze milhões de visitantes mensais, mostra o crescimento no número de mulheres, grande parte entre 18 e 24 anos, que também assistem a vídeos de sexo. Elas já representam um terço dos usuários da plataforma, incluindo as brasileiras.

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Respondendo à pergunta provocativa do título: sim, é possível conseguir driblar as muitas possibilidades de adicção nos dias de hoje. Muitos países conseguem. A Suécia, por exemplo, não apenas proíbe a comercialização de vapers, como também veta as crianças de entrarem com aparelhos celulares nas escolas. Esse gesto ajuda a prevenir que, quando adultos, se tornem dependentes ao uso de celular, seja em jogos on-line ou redes sociais. Acredito que, assim como o uso precoce aumenta significativamente o desenvolvimento em dependências digitais (lícitas ou ilícitas), o mesmo deve acontecer com dependências ligadas ao uso de telas.

Em resumo: fiscalização é a melhor e mais eficiente solução – do contrabando de vapers e sua comercialização, da venda de bebidas alcoolicas a menores, do uso de celulares, seja na escola ou em reuniões de trabalh, onde ele é perfeitamente desnecessário.

Por fim, a boa notícia é que todas estas adicções tem tratamento, seja apenas com psicoterapia ou em combinação com medicamentos controlados.

Analice Gigliotti é Mestre em Psiquiatria pela Unifesp; professora da PUC-Rio; chefe do setor de Dependências Químicas e Comportamentais da Santa Casa do Rio de Janeiro e diretora do Espaço Clif de Psiquiatria e Dependência Química.

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