Decifrando a mente de “Dahmer”, a série que é sensação na Netflix
Personagem real permanece um mistério por suas contradições
O que faz com que um rapaz nascido em uma família típica de classe média tenha se tornado um dos criminosos mais intrigantes dos Estados Unidos? São muitas as teorias que tentam explicar a história de Jeffrey Dahmer, o serial killer que matou 17 rapazes, a maioria nos anos 80. Dahmer se tornou uma incógnita inclusive para a ciência e a justiça forense, já que persistiu com seu temperamento até mesmo depois de preso.
As muitas camadas de Jeffrey Dahmer são exploradas na serie “Dahmer” (Netflix), mais uma produção de Ryan Murphy, o poderoso diretor americano cujo trabalho alia entretenimento e reflexão de forma memoráveis. O sucesso foi instantêneo e desde a estreia o programa está no topo dos mais vistos no streaming.
A partir da trajetória verídica de Dahmer, a série levanta uma sequência de questões palpitantes: nascemos violentos ou nos tornamos violentos? O quanto pais ausentes ou uma família disfuncional são determinantes na personalidade de uma criança?
Avaliar em retrospecto um caso complexo como o de Dahmer não é ideal para dar um diagnóstico preciso. Ele recebeu vários à época de sua morte. Hoje, é possível dizer que muito provavelmente ele tinha personalidade antissocial (isso pode ser atestado pelas mentiras frequentes, pela falta de empatia e de remorso, a manipulação, a irresponsabilidade e a impulsividade).
No entanto, ele também tinha elementos de outros possíveis transtornos de personalidade, como o borderline (em função de sua sensibilidade ao abandono) e esquizotípico (a maneira que Dahmer encontrou de permitir que suas vítimas fizessem parte de sua vida era o canibalismo: comê-las seria uma forma de incorporá-las).
Não se sabe ao certo porque algumas pessoas desenvolvem transtornos de personalidade. Não é possível apontar uma causa única, mas a genética e fatores ambientais podem ser relevantes. Traumas na infância, como abuso verbal ou sexual, são considerados influências – bem como a negligência parental.
Com frequência, pessoas com transtornos de personalidade cresceram em ambientes marcados por famílias disfuncionais. É o caso de Dahmer: uma mãe com transtornos mentais sem os devidos cuidados, um casal em brigas constantes e a falta de amparo ao filho mais velho. Porém, não se pode afirmar que os pais sejam os únicos culpados pela doença do filho. Se fosse assim, todos os irmãos criados pelo mesmo pai e mesma mãe teriam que ter um comportamento padrão – o que, sabe-se, não ocorre. De todo modo, ser obrigado a lidar com dificuldades na infância geralmente leva a problemas na adolescência e na vida adulta.
Outros possíveis diagnósticos de Dahmer, à luz do que se sabe hoje, são transtorno obsessivo compulsivo (em função dos relatos de pensamentos obsessivos e compulsões para matar e da forma organizada e metódica como guardava os corpos) e o transtorno psicótico breve. No entanto, apenas esses transtornos, de forma isolada, não explicariam a ausência de culpa e, portanto, o diagnóstico da personalidade teria que se somar a eles.
No entanto, o único diagnóstico que se pode cravar com certeza é o de transtorno por uso de álcool. Dahmer abusava de cerveja e de uísque, na rua ou em casa. E pesquisas apontam justamente que homens com transtorno de personalidade antissocial tem de três a cinco vezes mais chances de fazerem uso abusivo de álcool e drogas do que aqueles sem transtorno.
Recentemente, a jornalista americana Nancy Glass revelou uma curiosidade: ao entrevistar o pai de Dahmer, ele disse que a mãe do menino não gostava que ninguém tocasse no filho, a não ser para trocar suas fraldas ou para segurá-lo para fazer uma foto. Portanto, desde a primeira infância, ele não tinha a prática do contato íntimo com amigos ou parceiras(os). Mais velho, Dahmer gostava de ter os homens por perto, tocar suas vítimas, mas não se permitia ser tocado – como forma de negação à sua homossexualidade.
Outra personagem relevante na história é a vizinha de Dahmer, uma senhora negra que acompanhava o desaparecimento dos rapazes negros do bairro e sofria com o comportamento esquisito dele. Desconfiada de que havia algo errado, ela chegou a procurar a polícia diversas vezes. Nas poucas ocasiões em que se deram ao trabalho de atender à sua denúncia, o racismo falou mais alto: a palavra de um jovem branco suspeito tinha mais peso que a de uma mulher negra idônea. Infelizmente, de lá pra cá pouco mudou, tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil.
Ryan Murphy conduz a série com sutileza e inteligência, sem inocentar o assassino, mas tampouco sem se limitar a apenas condená-lo. Em um mundo farto de julgamentos e pré-conceitos, o diretor concede o mérito da dúvida: e se o algoz for também uma vítima?
Por levantar todas essas questões, “Dahmer” é imperdível.
Analice Gigliotti é Mestre em Psiquiatria pela Unifesp; professora da PUC-Rio; chefe do setor de Dependências Químicas e Comportamentais da Santa Casa do Rio de Janeiro e diretora do Espaço Clif de Psiquiatria e Dependência Química.