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Analice Gigliotti

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Comportamento

Câncer e bebidas alcoólicas: relação é mais próxima do que se imagina

O consumo de álcool é a terceira principal causa prevenível de câncer, depois do tabaco e da obesidade

Por Analice Gigliotti
26 fev 2025, 09h14
Pessoas brindam com copos de bebidas alcoólicas.
Instituição americana veio à público informar que está comprovada a relação entre consumo de bebida alcoólica e o câncer. (Freepik/Reprodução)
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Diversas pesquisas já comprovaram que as bebidas alcoólicas trazem sérios danos ao físico e à saúde mental. Agora, a prestigiada US Surgeon, braço do Departamento de Saúde dos Estados Unidos, que se dedica a pesquisar e divulgar conhecimento científico, vem a público defender um argumento definitivo: está provado que o álcool é uma das principais causas preveníveis de diferentes tipos de câncer.

Por décadas, foi dito que o consumo moderado de álcool ajudaria a prevenir ataques cardíacos e derrames. Com o passar dos anos, a ciência se encarregou de provar que essa teoria era falaciosa: mesmo dentro dos limites de consumo até então recomendados – uma dose por dia para mulheres e duas doses para homens –, as bebidas alcoólicas foram associadas a ocorrência de câncer. Segundo a US Surgeon, o álcool contribui diretamente para 100 mil casos da doença e 20 mil mortes relacionadas a cada ano.

A entidade solicitou a atualização dos rótulos das embalagens de garrafas e latas – que alertam sobre o risco para mulheres grávidas ou para motoristas de veículos, mas não abordam os riscos para a saúde. O desejo da US Surgeon é que, a exemplo do que já acontece com os maços de cigarro, os produtos passem a informar o risco de câncer de mama, de cólon e pelo menos cinco outras doenças malignas relacionadas por estudos científicos ao consumo de álcool.

No entanto, qualquer tentativa de alterar os rótulos de advertência em bebidas alcoólicas provavelmente enfrentará uma batalha difícil frente ao lobby da indústria. Rótulos não são alterados nos Estados Unidos desde 1988, embora a ligação entre álcool e câncer de mama já seja conhecida há décadas (um em cada seis casos de câncer de mama pode ser atribuído ao consumo de álcool).

Além da mama, o risco de câncer de boca e garganta pode aumentar entre 10% e 40% com o consumo de apenas uma bebida por dia ou até menos, segundo a US Surgeon. Estudos mais recentes também vincularam o consumo moderado de álcool a certas doenças cardíaca, incluindo fibrilação atrial, um tipo de arritmia cardíaca.

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Há cinco anos, o relatório científico que orientou as diretrizes alimentares americanas de 2020 a 2025 reconheceu que o álcool é um carcinógeno e geralmente prejudicial à saúde e sugeriu limites “mais rígidos” para homens, reduzindo a uma dose de bebida (ou 14 gramas de álcool por dia). No entanto, quando as orientações finais foram redigidas, não houve nenhuma mudança no aconselhamento de que beber “moderadamente” até duas doses ao dia para homens era aceitável. A Organização Mundial da Saúde (OMS) reitera que não há limite seguro para o consumo de álcool.

Mais de 40 países exigem advertências nas embalagens de bebidas alcoólicas. Mas o câncer raramente é mencionado. Diante de numerosas confirmações científicas, o governo americano se viu obrigado a reconhecer o número cada vez maior de evidências indicando que “mesmo dentro dos limites recomendados, beber pode aumentar o risco geral de morte por várias causas, como diversos tipos de câncer e algumas formas de doenças cardiovasculares”.

Até o momento, apenas a Coreia do Sul tem um rótulo de advertência sobre câncer de fígado, embora os fabricantes possam escolher rótulos alternativos que não mencionem o câncer. A Irlanda está se programando para introduzir rótulos que dizem que há uma “ligação direta entre álcool e cânceres fatais” a partir de 2026.

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O US Surgeon forneceu uma breve visão geral de pesquisas e revisões publicadas nas últimas duas décadas, incluindo um estudo global de 195 países envolvendo 28 milhões de pessoas. O relatório descreveu os mecanismos biológicos pelos quais o álcool é conhecido por induzir alterações cancerígenas no nível celular. A teoria mais amplamente aceita é que dentro do corpo, o álcool se decompõe em acetaldeído, se liga ao DNA e o danifica, permitindo que uma célula comece a crescer descontroladamente e crie um tumor maligno.

Experimentos com animais mostraram que roedores cuja água potável foi misturada com etanol, o álcool usado em bebidas alcoólicas, ou com acetaldeído desenvolveram um grande número de tumores por todo o corpo. Outras pesquisas mostram que o álcool gera oxidação (o que aumenta a inflamação e pode danificar o DNA). Ele também altera os níveis de hormônios como o estrogênio, que pode desempenhar um papel no desenvolvimento do câncer de mama, e facilita a absorção de carcinógenos como partículas de fumaça de tabaco pelo corpo, aumentando a suscetibilidade a cânceres de boca e garganta.

O relatório do US Surgeon também entra em detalhes sobre o aumento do risco associado à bebida. Por exemplo, o risco absoluto de câncer de mama ao longo da vida de uma mulher é de cerca de 11,3% (11 em 100) para aquelas que bebem menos de uma bebida por semana. O risco aumenta para 13,1% (13 de 100 indivíduos) com uma bebida por dia e até 15,3% (15 de 100) com duas bebidas por dia.

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Para os homens, o risco absoluto de desenvolver um câncer relacionado ao álcool aumenta de cerca de 10% (10 de cada 100 indivíduos) para aqueles que consomem menos de uma bebida por semana para 11,4% (11 por 100) para aqueles que bebem uma bebida todos os dias em média. Ele sobe para 13% (13 de 100 indivíduos) para aqueles que bebem duas bebidas por dia em média.

É evidente que o risco de câncer de cada indivíduo é diferente, dependendo do histórico familiar, da constituição genética e das exposições ambientais. No entanto, o consumo de álcool é a terceira principal causa prevenível de câncer, depois do tabaco e da obesidade. Curiosamente, menos da metade dos americanos associam o consumo de bebida alcoólica com risco de câncer, em comparação com 89% que reconhecem o tabaco como um carcinógeno, de acordo com uma pesquisa realizada pelo Instituto Americano de Pesquisa do Câncer, em 2019.

É fácil supor que isso acontece porque há anos há uma campanha massiva evidenciando os riscos do tabagismo – inclusive nos rótulos de cigarros. A US Surgeon foi peça-chave nesse movimento, desde os anos 1960, atentando para a associação do cigarro com o aumento de mortalidade. Agora, mais uma vez, a instituição sai na frente. Enquanto a gigantesca indústria dos produtores de bebidas alcoólicas investe pesado no lobby que os distancie do risco real de doenças, a US Surgeon defende o corajoso discurso que explicita a intrínseca relação entre álcool e câncer. É preciso ouvi-los. Se nada for feito, a ideia romantizada de um “simples drinque ou taça de vinho” continuará fazendo vítimas fatais por diversas doenças, incluindo o câncer.

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Analice Gigliotti é Mestre em Psiquiatria pela Unifesp; professora da PUC-Rio; chefe do setor de Dependências Químicas e Comportamentais da Santa Casa do Rio de Janeiro e diretora do Espaço Clif de Psiquiatria e Dependência Química.

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