“Bebê Rena” e a saúde mental: por que a série faz tanto sucesso?
Série coloca no centro do debate as diferentes formas de assédio e a ameaça de problemas de saúde mental sem acompanhamento especializado
Vez por outra, algum filme ou série do streaming viraliza e vira o assunto do momento. É o que aconteceu nas últimas semanas com “Bebê Rena” (Netflix). A trama, dividida em sete episódios, conta a história de Donny (Richard Gadd), um barman e aspirante a comediante que, após um pequeno gesto de gentileza com Martha (Jessica Gunning), passa a ser atormentado e perseguido por ela – um comportamento conhecido mundialmente como stalker.
O ator protagonista, Gadd, é o criador da série e afirma que ela se baseia na sua própria história. A primeira vez que a trama veio à público foi no tradicional Festival de Teatro de Edimburgo. O barulho foi tão grande, que logo o argumento de Gadd chegou à gigante do streaming, que encampou produzi-la para o o audiovisual.
A série tem como premissa o comportamento assediador e todas as suas variáveis; porque e como algumas pessoas são assediadas. A novidade é que ao longo dos episódios é também evidenciar um novo ponto de vista: porque algumas pessoas também são assediáveis com mais facilidade. Descobrimos, aos poucos, que o comportamento obsessivo de Martha supre, ao mesmo tempo, duas carências: a de Martha, que encontra na perseguição a Donny um motivo para viver, e a do próprio Donny – que vê em Martha alguém que se importa com ele, mesmo que de uma forma doentia.
Donny também tem uma relação intensa com Darrien (Tom Goodman-Hill), produtor de televisão de um programa que Donny admira. Isso faz com que ele passe a exercer primeiro uma posição de fascínio, mas logo em seguida de abuso sobre o protagonista. Com comportamento típico de um psicopata, Darrien lança mão do uso de drogas como mecanismo de assédio sobre Donny, que se submete ao uso abusivo de substâncias para satisfazê-lo, atendendo a uma necessidade muito grande (e doentia) de agradar o próprio algoz.
A série também tem causado interesse por mostrar uma Inglaterra diferente da que estamos acostumados a ver em “The Crown” e “Downton Abbey”, longe de tronos, coroas, riquezas e glamour. Ao contrário, somos expostos ao cotidiano empobrecido de uma classe remediada, que mora de favor, tem subemprego e vive de auxílio do Estado. Como cantam os Titãs, “miséria é miséria em qualquer canto, riquezas são diferentes”. O comportamento do espectador com o universo dos personagens, portanto, não é aspiracional, mas de potencial identificação.
Com o sucesso avassalador no streaming, iniciaram-se as polêmicas. A Martha da vida real, a inglesa Fiona Harvey, 58 anos, deu entrevista à televisão afirmando que o ator Richard Gadd exagerou em muitos aspectos do seu comportamento – embora tenha admitido que o conheceu em um pub em Londres e que se excedeu na busca por contato com o ator. Diante do imbróglio, Gadd explicou, depois do lançamento, que sua intenção era capturar a “verdade emocional” de sua experiência, não um “perfil factual”, embora a série seja apresentada pela Netflix como “história real”.
Ao final (sem spoilers!), entendemos como o assédio pode ser o motor para mais e novos comportamentos assediadores, uma cadeia doentia de estragos, buracos emocionais e recompensas – nem sempre saudáveis – que preencham esses buracos. A série é uma forma instigante e sem formalismos de colocar no centro do debate as diferentes formas de assédio e a ameaça de problemas de saúde mental sem acompanhamento especializado.
Analice Gigliotti é Mestre em Psiquiatria pela Unifesp; professora da PUC-Rio; chefe do setor de Dependências Químicas e Comportamentais da Santa Casa do Rio de Janeiro e diretora do Espaço Clif de Psiquiatria e Dependência Química.