“Bárbara”: quando a vida de um dependente alcoólico sobe ao palco
Peça com atriz Marisa Orth diverte e assusta com as confissões de uma mulher dependente de bebidas alcoólicas
Se “o mundo é um palco”, como escreveu o inglês William Shakespeare, ele se torna ainda mais grandioso quando traduz sentimentos íntimos e dolorosos da personagem, mas que atravessam a emoção do público. É isso que consegue a atriz Marisa Orth com o monólogo “Bárbara”, escrito por Michelle Ferreira. É uma comédia, mas não é. É um drama, mas não é. Oscila por gêneros e humores, como qualquer dependente, seja de que substância for.
Criado a partir do livro “Saideira – Uma dose de esperança depois de 20 anos lutando contra a dependência”, da jornalista Bárbara Gancia. A partir de fatos verídicos da vida de Gancia, a peça abora pontos-chaves da vida de todo alcoólico: a arrogância inicial face ao vício, a equivocada certeza de pode parar quando quiser, os constrangimentos e embaraços que os excessos podem causar diante de amigos e parentes, a tomada de consciência sobre a sua condição, a busca por ajuda, a dificuldade em manter-se abstêmio, as recaídas (e a tristreza perante elas), a volta “aos trilhos”, enfim, etapas que todo mundo que mantem o controle sobre uma dependência conhece bem.
Um dos momentos mais emocionantes da peça para muitas pessoas na plateia é, justamente, quando a personagem conta os dias sem consumir álcool. “Um, dois, cinco, nove, treze, vinte e cinco, trinta e dois, quarenta e sete… Zero”. A contagem se repete algumas vezes, o suficiente para dar um nó na garganta de quem assiste – e dar a real dimensão de que não existe jogo ganho quando se trata de manter-se abstêmio.
Outro ponto fundamental de se falar é o show à parte que Marisa Orth dá no palco, vivendo a personagem título. Conhecida por seus personagens cômicos, Marisa consegue desenhar o trabalho cheio de nuances, muito além da comédia, de forma tão respeitosa à condição da personagem que, não raro, os espectadores se vêem alternando entre risadas e angústias. Personagens dependentes de bebidas alcoólicas, invariavelmente, estão a um triz da caricatura que se atrela a eles: frágeis, vulneráveis, diminuídos em sua existência. Apenas uma grande atriz conseguiria dar a dimensão de humanidade que Bárbara pede – e Marisa consegue, com louvor.
Depois do sucesso em São Paulo, “Bárbara” finalmente chegou ao Rio. A curta temporada na cidade se encerra neste domingo. Se eu fosse você, iria para o Teatro XP para conferir a peça, pela qualidade artística do trabalho, mas também pelo seu potencial empático de entender o que se passa na mente e na alma de qualquer pessoa dependente.
Programa imperdível! Corra para o teatro!
Analice Gigliotti é Mestre em Psiquiatria pela Unifesp; professora da PUC-Rio; chefe do setor de Dependências Químicas e Comportamentais da Santa Casa do Rio de Janeiro e diretora do Espaço Clif de Psiquiatria e Dependência Química.