Apostas online: o perigo da liberação do jogo ronda novamente
Audiência pública irá discutir, mês que vem, o impacto do jogo no Brasil
Está agendada para o próximo dia 11 de novembro, uma audiência pública no Supremo Tribunal Federal acerca da do impacto das apostas online no Brasil. Para além de todas as vertentes financeiras e fiscais, que seguramente serão ouvidas, é fundamental também dar voz aos especialistas em saúde mental, tendo em vista a alta capacidade de causar dependência em seus usuários – desde 1979 a Organização Mundial de Saúde reconhece o Transtorno do Jogo e, desde 2018, a OMS também considera o uso abusivo de jogos eletrônicos uma doença.
Recém-sancionada pelo Governo Federal, a atividade dos sites de apostas é bastante questionável por diversas razões. Recentes escândalos, envolvendo inclusive pessoas famosas, indicam a ligação das bets com manipulação de resultados de jogos esportivos, além de lavagem de dinheiro.
O risco do acesso facilitado e regulamentado a sites de apostas, à distância de apenas um toque no celular, é uma ameaça real à saúde mental da população. Os impactos do jogo patológico são bastante significativos. Quem convive com dependentes sabe o estrago que os jogos de azar são capazes de causar não apenas na vida dependente – social, familiar, financeira, laboral – mas também na vida de sua família.
O grave é que, diante de qualquer gatilho de frustração ou ansiedade, o jogo está logo ali, pronto para “consolar” o usuário. E como acontece com toda droga, quanto mais rápido o efeito da substância, maior sua capacidade de gerar vício. No caso do jogo, como a resposta cerebral é praticamente imediata, a fissura por uma nova experiência leva a uma nova aposta de forma quase sequenciada. Resultado: mais de 22 milhões de brasileiros já apostaram em alguma plataforma de bet, superando até mesmo os investimentos em ações e outros títulos financeiros.
Para agravar ainda mais a situação de quem aposta, os jogos online são fartamente divulgados na televisão, em patrocínios, em diversas mídias e nas redes sociais, por influenciadores digitais, que levam milhares de incautos a apostar (e perder) o que tem e o que não tem. Esta é uma das facetas mais terríveis e tristes do jogo compulsivo: ela arrasta tudo que circunda a vida do jogador.
É fundamental que o movimento que se organiza para regulamentar o jogo considere duas vertentes: a prevenção à adição e o tratamento a quem já apresenta diagnóstico de dependência. Diretrizes como restrições de horário e limites de gastos em apostas são essenciais para diminuir os riscos de dependência. Outras iniciativas, como monitoramento e coleta de dados dos apostadores, também colaboram para a prevenção, evitando que se propague uma “epidemia” de transtorno do jogo.
Outro fator a que as autoridades devem estar atentas é na divulgação de sites de apostas entre o público menor de idade. Com o objetivo de ganhar mercado nesse recorte da população e diante da falta de regras claras, as empresas recorrem à publicidade danosa, que lança mão de recursos pouco éticos.
A lei já prevê que parte da arrecadação com apostas deve ser revertida em programas de prevenção e tratamento do transtorno do jogo. No entanto, não vemos iniciativas concretas nesse sentido até o presente momento. Algumas ações possíveis de imediato são a criação de Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) com finalidade específica para o tratamento do jogo patológico e a melhor capacitação dos profissionais de saúde que lidam com essa adição.
Há mais quinze anos, montei um dos primeiros Centros de Tratamento de Dependências Comportamentais do Brasil na Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro. Acompanho o tema muito de perto, há bastante tempo, e estou bastante impressionada como a prevalência em adicçao a jogos de azar aumentou e como os quadros têm sido mais graves, especialmente depois da ascensão dos sites de apostas e jogos online. Não estou sozinha neste sentimento. Pessoas ativas na sociedade civil já notaram o tamanho do imbroglio: a imprensa noticiou recentemente que o comunicador e influenciador Felipe Neto, um dos maiores do país, procurou a ministra da da Saúde, Nísia Trindade, se oferecendo para contribuir no combate ao uso abusivo das bets.
Também em função dessa crescente demanda, a Espaço Clif, para cumprir com seu papel social, acaba de organizar o serviço de atendimento “Programa Mudando o Jogo”, tanto para os dependentes quanto para suas famílias. Visando que ele tenha o maior alcance possível e possa ser de utilidade para o maior número de pessoas, como uma prestação de serviço, os preços praticados para esses atendimentos serão acessíveis. Estarão pessoalmente atendendo, além de mim e Aline Berger, os psicólogos Elizabeth Carneiro, Sabrina Presman e Marco Aurelio Nunes. Se desejar participar, envie uma mensagem para o WhatsApp 21 99229-6294.
Mas não é suficiente. É de suma responsabilidade que na audiência de 11 de novembro, os ministros do Supremo Tribunal Federal estejam atentos aos diversos argumentos que rogam o máximo rigor com as atividades de apostas online no Brasil, em nome da saúde pública dos brasileiros.
Analice Gigliotti é Mestre em Psiquiatria pela Unifesp; professora da PUC-Rio; chefe do setor de Dependências Químicas e Comportamentais da Santa Casa do Rio de Janeiro e diretora do Espaço Clif de Psiquiatria e Dependência Química.