A quem interessa a legalização de cassino, bingo e jogo do bicho no país?
Argumentos bem-intencionados de defesa teórica do projeto caem por terra quando entra a vida real

Foi num momento de atenção dispersa por uma sucessão de tragédias no noticiário – os números da pandemia, os deslizamentos em Petrópolis, a ofensiva militar da Rússia contra a Ucrânia – que o Congresso Nacional achou por bem colocar em pauta de votação, na semana passada, um projeto que merece muito mais discussão e aprofundamento do que teve: a legalização de cassinos, bingos e jogo do bicho, proibidos desde 1946 no Brasil. Por 246 votos favoráveis, o projeto foi aprovado e agora segue para análise no Senado.
Os defensores da lei são ágeis em listar as benesses da decisão: geração de emprego e renda, aumento na arrecadação de impostos, destinação de parte da renda para projetos sociais ou esportivos. Há ainda, claro, o interesse econômico por trás da atividade: segundo o Instituto Brasileiro Jogo Legal, jogo do bicho, caça-níqueis, bingos e apostas na internet alcançariam a vultuosa receita de 20 bilhões de reais ao ano. Uma lista de argumentos bem-intencionados no terreno da teoria, mas que não se sustentam de pé quando entra a vida real – basta observer o desdobramento da Lei Zico, que previa investimentos no esporte e poucos aconteceram de fato.
Quem quiser entender como o jogo legalizado atua, basta assistir a brilhante série “Ozark”, em sua quarta temporada na Netflix. Usando a operação de um cassino como fachada para ilegalidades, o casal Wendy e Marty e seus filhos se veem enredados em uma trama de corrupção, tráfico de drogas e lavagem de dinheiro que envolve, inevitavelmente, assassinatos e suborno a políticos e líderes religiosos.
Para além de todos estes danos à sociedade, os jogos de azar têm enorme impacto sobre a saúde mental dos indivíduos. O vício do jogo, é um comportamento aditivo que consiste em apostar de forma sistemática e descontrolada. O Transtorno do Jogo caracteriza-se por sintomas parecidos com os dos transtornos por uso de substâncias (como álcool e drogas), agindo no mesmo lugar do cérebro. Inclusive, os jogadores podem apresentar desenvolvimento de tolerância e síndrome de abstinência, levando a sofrimento clínico significativo ou prejuízo no funcionamento social ou professional, com possibilidade de aumento de tentativa de suicídio.
Em 2017, a Organização Mundial da Saúde (OMS) colocou o Transtorno de Jogo no Código Internacional de Doenças.Segundo levantamento feito à época pelo Departamento de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (USP), a compulsão por jogos atinge cerca de 1% da população brasileira, totalizando mais de 2 milhões de viciados.Porém, não são apenas os dependentes que sofrem. As famílias dos jogadores patológicos também são afetadas, emocionalmente e financeiramente, sendo obrigados a pagar as dívidas de jogo do parente adicto.
Pela regra aprovada pelos deputados na semana passada, estado com mais de 25 milhões de habitantes, como São Paulo, poderá ter até três cassinos; unidades da federação que tenham entre 15 e 25 milhões de habitantes, como Rio de Janeiro e Minas Gerais, estão autorizados a ter até dois cassinos e, por fim, os demais estados e o Distrito Federal com até um cassino cada. Por essa regra, já é possível calcular o surgimento de 33 novos cassinos no país. Esse número pode ser ainda maior com a liberação de navios com estrutura para jogos e operação em hotéis. Para os bingos, a regra é um novo estabelecimento para cada 150 mil habitantes, o que dá uma estimative de 82 estabelecimentos em São Paulo e 45 no Rio de Janeiro.
Portanto, os parlamentares brasileiros estão escolhendo deliberadamente estimular o crescimento do número de jogadores patológicos. Se proibir o jogo não resolve o drama da dependência, ao menos reduz a exposição ao perigo. E o Congresso brasileiro opta por caminhar no sentido oposto. Diante de tais números, fica fácil responder o título do artigo: a quem interessa a legalização de cassinos, bingos e do jogo do bicho no Brasil? Interessa diretamente a vários grupos econômicos. No entanto, prefiro me ater a quem não interessa a decisão do Congresso Nacional: a legalização de jogos de azar não interessa à saúde mental do povo brasileiro.
Analice Gigliotti é Mestre em Psiquiatria pela Unifesp; professora da PUC-Rio; chefe do setor de Dependências Químicas e Comportamentais da Santa Casa do Rio de Janeiro e diretora do Espaço Clif de Psiquiatria e Dependência Química.