A palavra do ano é… gaslight. Mas você sabe o que é isso?
Tradicional dicionário norte-americano escolheu como palavra do ano o termo que designa relacionamentos abusivos e violência psicológica
No filme “Gaslight” (1944), a atriz Ingrid Bergman interpreta uma esposa que alerta o marido de que coisas esquisitas estão acontecendo em casa, como o odesaparecimento de objetos, barulhos vindos do sótão e as luzes a gás da casa diminuindo (daí a origem do título). O marido, no entanto, insiste que tudo não passa de enganos da mente dela, tentando-a fazer acreditar que ela estaria ficando louca.
Apesar de um clássico dos anos 40, o filme se tornou bastante popular nos últimos anos, com a crescente tendência da construção de narrativas e do poder das fake news. “Nesta era de desinformação, de ‘notícias falsas’, teorias da conspiração, trolls do Twitter e deepfakes – gaslighting surgiu como uma palavra do nosso tempo para resumir mentiras que fazem parte de um plano maior”, disse a empresa do prestigiado dicionário norte-americano Merriam-Webster ao justificar a escolha de “gaslight” como a palavra do ano. De acordo com a empresa, houve um impressionante crescimento de 1.740% nas buscas pela expressão em 2022.
Em tempos de ações afirmativas do feminismo, a palavra ganhou mais uma camada. “Gaslight” é usado frequentemente para definir a conduto criminosa de homens que desqualificam ou desmerecem mulheres, colocando em xeque suas atitudes e opiniões, fazendo com que elas desacreditem de si mesmas – chegando a cogitarem se não estão ficando mentalmente instáveis. A prática é denunciada com frequência em processos por feminicídio.
Em “Gaslit” (o nome não é à toa!), uma das séries mais comentadas do ano, Julia Roberts interpreta Martha Mitchell, figura esquecida, mas fundamental, responsável por colocar fogo nas denúncias contra Richard Nixon e que acabaram levando-o ao Watergate. Na tentativa de silenciá-la, o marido a difamou e até orquestrou um cárcere privado para evitar que ela falasse à imprensa. Anos depois, mesmo com Nixon deposto, Mitchell morreu desacredita.
Para concluir: a definição que Merriam-Webster dá para “gaslight” é “ato ou prática de enganar grosseiramente alguém, especialmente para vantagem própria”. Segundo os organizadores do dicionário, preenche um espaço entre a palavra “mentir”, que normalmente ocorre entre indivíduos, e “fraude”, que geralmente envolve organizações. “Gaslight”, portanto, trabalha em referências pessoais e políticas.
Na seleção pela palavra do ano, “gaslight” superou outros termos mais ligados a eventos que ocorreram em 2022. Entre eles: “oligarca”, que aumentou o interesse após a invasão da Ucrânia pela Rússia; “rainha consorte”, o título correto da esposa do recém-coroado rei Charles; e “omicron”, a letra grega dada à variante do coronavírus.
Está certa a empresa Merriam-Webster: nada pode ser mais a cara de 2022 do que “gaslight”. Só nos resta aguardar que, em dezembro de 2023, a palavra escolhida seja mais otimista.
Analice Gigliotti é Mestre em Psiquiatria pela Unifesp; professora da PUC-Rio; chefe do setor de Dependências Químicas e Comportamentais da Santa Casa do Rio de Janeiro e diretora do Espaço Clif de Psiquiatria e Dependência Química.