Coragem é o ritmo: estreia na maratona após diagnóstico de câncer de mama
Fisioterapeuta referência em corrida, Raquel Castanharo completou sua 1ª maratona no Rio duas semanas após a notícia, e celebrou o afeto carioca como cura

No último domingo, Raquel Castanharo viveu sua estreia na Maratona do Rio indo muito além dos 42 quilômetros. Fisioterapeuta referência nacional em biomecânica da corrida, ela completou sua primeira maratona duas semanas após receber um diagnóstico de câncer de mama. A notícia veio como um baque e trouxe uma avalanche de exames justamente na reta final do ciclo de treinos.
Raquel não recuou. Com o aval da oncologista, que recomendou que ela se mantivesse bastante ativa inclusive durante o tratamento, ela transformou a prova em algo maior: um reencontro com a vida.
“Todos os meus médicos me disseram que correr não mudaria a doença. Não estou negligenciando minha saúde e inicio o tratamento após os trâmites do plano de saúde, no fim do mês. Podia ficar em casa, ansiosa, esperando. Mas preferi correr”.
“Foi um presente poder viver essa maratona no meio do diagnóstico. Aqui, não vivi um câncer, vivi a Maratona do Rio”.

Com a voz calma e o riso solto, Raquel compartilha tudo com uma honestidade brutal, inclusive a dor. “É claro que, para mim, essa parte do diagnóstico foi muito difícil. Você faz um exame e espera cinco dias: será que é câncer? Sim, é. Depois, mais cinco dias pra saber o tipo. Depois, mais cinco pra saber se tem metástase. Você fica o tempo todo na corda bamba. Ainda estou nesse processo. Mas, quando eu corro, de verdade, não consigo pensar nisso.”
A escolha do Rio de Janeiro para estrear nos 42 km foi feita com muito afeto e se tornou ainda mais simbólica nesse momento. Ela veio para a cidade com o marido e os dois filhos, que inclusive cruzaram a linha de chegada de mãos dadas com a mamãe.

“Já me chamaram pra correr maratona até em Nova York e eu recusei. Queria meus filhos comigo. Queria gente conhecida na torcida. Queria abraços no percurso. E só o Rio poderia me dar isso”.
“O Rio é uma cidade que tem uma energia que te abraça. É clichê falar isso? Talvez. Mas é verdade. Por isso que todo ano a Maratona do Rio é sagrada no meu calendário”.
Da USP às pistas: uma vida dedicada à corrida
Aos 38 anos, Raquel se dedica aos corredores desde os tempos da faculdade na USP, bem antes de se considerar uma atleta. “Fui estagiária voluntária no Hospital das Clínicas, e o ambulatório de medicina do esporte era praticamente só de corredores. Naquela época nem tinha o boom que tem hoje. Ali, percebi que gostava de cuidar de corredor e que era boa nisso”.
Com mestrado também pela USP, ela construiu uma trajetória baseada em evidência científica, e com sua abordagem acolhedora criou o programa Viva a Corrida, em que orienta milhares de amadores de todos os níveis. Ela diz que sua maior missão é provar que correr pode — e deve — ser prazer. E prevenir que dores pequenas se tornem lesões.
“Eu brinco que tem dois tipos de corredores: os que já se machucaram e os que ainda não se machucaram. Até eu, quando estou correndo, às vezes me esqueço que sou fisioterapeuta”
Correr do seu jeito
Apesar de dedicar a carreira aos corredores desde 2007, ela demorou a se ver como atleta. “Fui me aproximando da corrida aos poucos, no meu tempo. Sempre fui contra essa pressão de correr mais, mais rápido, mais longe. Comecei a treinar com planilha há uns nove anos. Fiz minha primeira meia só em 2022. E só agora senti que queria, de fato, viver a experiência da maratona. Do meu jeito. Sem pressa. Sem pirar por tempo. Eu só queria fazer isso se fosse leve, feliz, inteira”.
Para ela, correr é sobre viver com verdade. “Não existe um juiz da corrida que define quem é bom ou ruim. Existem vários tipos de corredores, e tudo bem. O meu jeito de correr não é no sofrimento. É no prazer, para me divertir”.

“Correr é encontrar o seu jeito. Pode ser pra buscar pódio, pode ser só pra se movimentar, pode ser pra não enlouquecer num momento difícil. O importante é que faça sentido pra você”

E foi assim que ela largou no Aterro após quatro meses de treinos, o corpo preparado e a cabeça em ebulição. Durante o percurso, a resposta do público foi avassaladora: Raquel recebeu muitos gritos e abraços, sobretudo de outras mulheres. E, claro, não segurou as lágrimas. “Saúde mental não é vibrar o tempo inteiro positivo. Saúde mental é ficar triste quando se está triste.”
“Embora eu sempre apareça bem no Instagram, eu não estou bem o tempo inteiro. Assim é a vida”
Dias antes, ela havia dividido a notícia com os seguidores. “Foi a melhor decisão. Recebi uma enxurrada de afeto. A corrida tem isso. É comunidade. O diagnóstico ainda está muito fresco. Ainda estou esperando o resultado de exames, ainda tenho medo. Mas, enquanto eu corro, não penso no câncer. E foi isso que essa maratona me deu: presença.”
“Minha médica disse que é para treinar pesado pra ganhar massa antes da quimio, não é pra treinar fofo. A gente tende a achar que, ao adoecer, deve ficar quietinha. Mas estar ativa só ajuda”
Ela sabe que a jornada não termina na chegada. Nos próximos meses, Raquel inicia a quimioterapia. Depois virá a cirurgia. Mas parte desse caminho já está bem pavimentado. “A quimio é puxada, mas um corpo forte tolera melhor. Claro que vou fazer o que for tolerável, não sei como meu corpo vai reagir. Mas começar o tratamento treinada é um privilégio. No meio do caos, ainda consigo ver muita coisa positiva.”
Criado por Raquel Castanharo, o Viva a Corrida é mais do que um programa de treinos: é uma plataforma completa para quem quer correr com prazer, longe das lesões e das pressões de performance. A proposta é clara: ensinar o corredor a reconhecer os sinais do corpo e agir a tempo, antes que uma dor vire problema. “Alguma dor vai aparecer, mas se você cuidar no começo, não vira lesão. Às vezes, só precisa pular um treino e fazer o exercício certo”, explica.
A ferramenta inclui planilhas de corrida para todos os níveis (inclusive caminhada para iniciantes), treinos de fortalecimento e orientações práticas sobre hábito e constância. O diferencial está no auto-manejo da dor: um sistema baseado em evidências científicas que ajuda o corredor a avaliar o incômodo, ajustar a planilha e seguir em frente com segurança.
Funciona assim: o usuário informa a região e a intensidade da dor (de 0 a 10) e o aplicativo responde com exercícios específicos e adaptações no treino. Em vez de seguir fórmulas rígidas ou ignorar sinais, o corredor aprende a escutar o corpo. “A gente escreveu até o que a pessoa deve dizer pro treinador, porque nem todo mundo sabe quando ou como pedir uma pausa. Tem gente que acha que é normal sentir dor. E não é”.
A plataforma também foi pensada para ser inclusiva. “Tem planilha pra quem quer recorde pessoal, mas também tem pra quem nunca correu. Minha mãe, por exemplo, precisava de ajuda pra começar”.
Raquel diz que usou próprio aplicativo durante o ciclo da maratona, quando sentiu dores no joelho e tornozelo. Ajustou os treinos, fez os exercícios e seguiu. “Às vezes, até a gente que corre há anos ainda cai nessa armadilha de não parar. O Viva ajuda a quebrar esse ciclo”.